A lenda de Ugolino della Gherardesca
No contexto desta horrenda lenda de Ugolino della Gherardesca, há que começar por dizer que no passado já cá fizemos diversas alusões à Divina Comédia de Dante Alighieri. Recorde-se, nesse sentido e para quem ainda não conhecer a obra, que na primeira das suas três partes o herói desce os círculos do Inferno e vai encontrando aqueles que se pensavam ser os maiores pecadores de todos os tempos. A ideia já vinha da Antiguidade e continuará na Idade Média e no Renascimento, mas por hoje bastará explicar que nesse conjunto de sistemas do pós-vida existia sempre uma espécie de evolução entre os falecidos, seja num sentido positivo (i.e. no último grupo eram colocados os melhores dos falecidos), ou num sentido negativo, i.e. os piores de todos os pecadores eram encontrados no último dos grupos. O Inferno da obra de Dante estrutura-se na segunda forma, e esta figura encontra-se quase no local mais profundo do Inferno - pior que ele, só mesmo Judas Iscariotes (traidor de Jesus Cristo), Bruto e Cássio (dois dos traidores de Júlio César). Mas, se os outros três são muito mais conhecidos no panorama histórico ocidental, o que fez este para merecer tal "honra"? Vamos contá-lo aqui, mas fiquem os leitores mais sensíveis desde já avisados que esta história poderá não ser muito apropriada para eles!
Conta-se então que Ugolino della Gherardesca foi uma personagem histórica real, que viveu no século XIII da nossa era em terras de Itália. Envolvido em disputas políticas entre as famílias dos Guelfos e Gibelinos, acabou também ele por ser traído e aprisionado, juntamente com os seus filhos, no interior de uma torre na cidade italiana de Pisa. E até aqui tudo mais ou menos bem, é provável que todos os envolvidos considerassem a situação puramente temporária, mas sem que o soubessem o encarcerador atirou da chave da entrada para um rio próximo. Depois, com o avançar dos dias, deixou de ser dada comida a estes prisioneiros e ouviu-se um barulho... o som de "alguém" a emparedar a entrada da torre.
Os dias foram passando. O medo e a incerteza deram lugar à fome. E então, tomou lugar o derradeiro dos pecados de Ugolino della Gherardesca. Sim, ele tinha sido traidor, mas a sua abominável história ainda não tinha acabado. Cheios de fome, em enormíssimo desespero, os filhos desta figura - que se supõe ainda serem crianças, como pode ser constatado na imagem acima - pediram-lhe ajuda. Pediram-lhe que lhes explicasse o que se passava, imploraram-lhe uma só palavra da sua boca, mas ele manteve-se calado, sempre calado. E à medida que as horas passavam, enquanto estas crianças imploravam mais e mais pelo auxílio paterno, ele colocou as mãos na boca e mordeu-as com força, para não ter de gritar. Não compreendendo o que se passava, diz-se que as crianças até lhe disseram "Pai, pai, não te comas! Se tens assim tanta fome, come um de nós...!" - mas ele manteve-se tão calado como sempre. Passaram-se mais alguns dias e estes filhos de Ugolino della Gherardesca faleceram em virtude da sua fome. Depois, também o pai destas infelizes crianças faleceu, esfomeado, e dizem alguns que, nesse maior de todos os desesperos, tentou ainda comer os cadáveres dos próprios filhos...
Face a esta horrenda história - talvez a mais inquietante de todas as contidas na Comédia de Dante - sempre fomos pensando que o pecado de Ugolino della Gherardesca não terá sido apenas o da traição aos seus congéneres, mas a traição aos que mais confiavam nele, como seu próprio pai, e aquele derradeiro pecado do silêncio, de não se dizer uma única palavra a um outro ser humano, mesmo quando uma só frase, um só som, lhes teria poupado sofrimento. Se, de um ponto de vista poético, esta é uma história belíssima, já no sentido humano é provavelmente uma das mais horrendas que os poemas épicos têm para nos dar a ler... a história de um homem que pelo mero acto de falar, de abrir a sua boca, poderia ter salvo os seus filhos, poderia ter afastado pelo menos parte do seu sofrimento e do de aqueles que amava, mas escolheu e decidiu não o fazer...