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Mitologia em Português

12 de Junho, 2022

A lenda do Bom Jesus de Matosinhos

Terminam hoje as festas anuais do Bom Jesus de Matosinhos, com a sua famosa imagem de Cristo que, segundo a lenda, data do primeiro século da nossa era. Agora, se são muitos os nomes que lhe foram sendo associados ao longo dos séculos (como Senhor de Matosinhos), talvez poucos sejam mais famosos que o original, o "de Bouças", em virtude de um concelho, hoje já desaparecido, na zona do Porto em que existiu um mosteiro em que esta famosa imagem foi guardada durante séculos, então sob o nome de São Salvador de Bouças. Conte-se, então, a história desta representação de Cristo, tão famosa que até é venerada em Congonhas, nas terras do Brasil!

O Bom Jesus de Matosinhos

Na fotografia acima pode ser visto o chamado Bom Jesus de Matosinhos. É uma representação um tanto ou quanto estranha, como é fácil constatar. Se as imagens que o acompanham são muito mais recentes (se a memória não nos engana terão cerca de quatro séculos), a principal, a do próprio Jesus Cristo, diz-se que data do primeiro século da nossa era. Isto porque, seguindo a lenda, ela foi feita pelas mãos de Nicodemos, um contemporâneo de Cristo que foi o responsável pela sepultura do filho de Deus. Depois, em tempo de perseguição e segundo uma versão da lenda, ela foi atirada aos mares, onde viria a dar à costa nesta cidade do norte de Portugal, dizendo parte da história que isso aconteceu por volta do dia 3 de Maio do ano 124. Na altura faltava-lhe um braço, o esquerdo, que foi encontrado na mesma praia a 25 de Maio de 174. Reconstruída então a totalidade da representação original, diz-se depois que a imagem foi escondida no tempo dos ataques muçulmanos, só tendo sido recuperada no século de Afonso Henriques, e assim se pode resumir o cerne de toda a sua história.

 

Mas... quem tiver mais interesse nestes temas poderá fazer-se uma questão bastante óbvia - como sabemos tudo isto? Que provas há de todas estas coisas? A verdade é que.... nenhumas, ou quase nenhumas, porque em dada altura os registos da chamada Igreja de Bouças foram destruídos num incêndio, e então nada de muito real e comprovável se pode afirmar sobre esta misteriosa imagem do Bom Jesus de Matosinhos. É provável que tudo isto se trate de pura lenda e nada mais, até porque Alexandre Manuel Viegas Maniés, na sua tese de mestrado O Crucificado Bom Jesus de Matosinhos: Estudo técnico – conservação e restauro de uma escultura medieval, demonstra um conjunto provas que atestam que a imagem foi produzida após o século VII da nossa era, sendo por isso medieval. A cruz é mais tardia.

 

Mas, por um momento esqueça-se isso. Suponha-se que apesar da imagem parecer um tanto ou quanto estranha (o que até pode atestar, de forma indirecta, a sua idade significativa), data mesmo do primeiro século da nossa era. Se assim o fosse, como explicar que a cruz, e Cristo crucificado, só se tenham tornado símbolos cristãos vários séculos mais tarde? Ou como explicar que, também nesse primeiro século da nossa era, já existissem crentes dessa nova religião em Portugal? Surpresa, surpresa (!), é também para explicar isso que surge uma outra lenda associada a esta!

 

Matosinhos e a Origem da Vieira de Santiago

Conta-se então que em meados do século I vivia na zona que é hoje Matosinhos um tal Gaio ou Caio Cárpio. Enquanto festejava o seu casamento numa zona próxima da praia avistou no mar uma estranha barca. Tentando aproximar-se dela, reparou que o seu cavalo conseguia correr miraculosamente sobre as águas, chegando até à embarcação que transportava o corpo de Santiago (famosa de uma lenda do norte de Espanha que já cá contámos antes). Ficou maravilhado com o prodígio, claro está, convertendo-se posteriormente ao Cristianismo, mas ainda nessa altura - presume-se que quando estava a voltar do local de barca... - caiu às águas e saiu delas "matizado" de vieiras (ou seja, coberto delas!), levando não só ao (então futuro) nome da cidade de Matosinhos, mas também à suposta introdução da religião cristã em Portugal, e ainda à subsequente associação dos famosos moluscos com as terras de Compostela!

 

 

Claro que também tudo isto é pura lenda, da qual não existem quaisquer provas reais, mas falar-se do Bom Jesus de Matosinhos é, talvez mais que tudo, falar-se de uma constelação de lendas que foram sendo contadas, recontadas e adaptadas ao longo dos séculos, quase sempre sem provas reais. Por exemplo, os mais atentos poderão ter notado que se passaram cerca de 50 anos entre o momento em que foi encontrada a imagem de Cristo e a recuperação do seu braço; como se soube disto, tantos séculos mais tarde? Um autor da primeira metade do século XVIII, António Cerqueira Pinto, explicou-o dizendo que foram encontradas nas antigas ruínas de São Salvador de Bouças um monumento com dois números inscritos, um 124 bem visível e um 50 quase apagado... e que apesar da ausência de qualquer contexto para a numeração, se tomou então estes números como os do ano descoberta da representação cristã e do respectivo braço, o que soa quase a uma absurda brincadeira!

 

Hoje, fruto de estudos como os de Alexandre Manuel Viegas Maniés, sabe-se que esta representação de Jesus Cristo é medieval, precedendo em alguns séculos a cruz que ainda a acompanha. Como tal, não pode ser do primeiro século da nossa era, não pode ter sido feita por Nicodemos, ou pelo menos não sem que se tentem inventar todo um conjunto de absurdos para, na senda do tal António Cerqueira Pinto, se tentar descartar - ou evitar miraculosamente - as provas que agora temos. Em pior caso, pode sempre recorrer-se à infame ideia de "o Diabo falsificou todos os testes e provas para iludir os crentes", o que é sempre muito triste...

Mas, mesmo que as histórias de hoje se tratem de meras lendas, continuam a ser importantes na cultura portuguesa, sendo celebradas (quase) todos os anos nos locais em que se crê que aconteceram. E isso não é mau, desde que se saiba reconhecer onde termina a pura lenda e começa o culto religioso propriamente dito. Talvez seja a essa reflexão, mais que tudo o resto, que nos dias de hoje nos convida este Bom Jesus de Matosinhos, aquele antigo São Salvador de Bouças que já era bem conhecido nos longínquos tempos do nosso primeiro rei...

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