A lenda do Castigo do Bispo
Encontrar a lenda do Castigo do Bispo, de que aqui falamos hoje, não foi tarefa nada fácil, pela simples razão de que o seu nome é muito pouco informativo. Desde a lenda do Bispo Negro até muitas outras, são diversas as histórias nacionais em que um prelado castiga alguém, ou é castigado, por uma qualquer razão. Portanto, passámos meses em busca de uma potencial resposta, em que um castigo de um bispo fosse o elemento central da história. Depois, apercebemo-nos de uma curiosa coincidência - na listagem de lendas nacionais compilada por Teófilo Braga esta surge depois de duas outras lendas associadas ao rei Dom Pedro I, levantando uma leve possibilidade de que esse tal bispo, e respectivo castigo, até pudesse estar associado com esse monarca. E, na verdade, a Crónica de El-Rei Dom Pedro I, de Fernão Lopes, conta uma história curiosa que se poderá ter tornado lendária ao longo dos séculos.
Numa dada altura da sua vida, quando D. Pedro I foi ao Porto, ouviu falar de um bispo que se andava a envolver sexualmente com uma mulher casada. As pessoas da região sabiam do caso, mas tratando-se o criminoso de um religioso com certo nível social, tinham medo de intervir na situação. Então, quando o rei soube da ocorrência, pediu que o bispo se encontrasse com ele e urdiu um plano.
Que plano era, perguntam? Algo de simples - ele queria encontrar-se com o bispo totalmente sozinho, pelo que pediu aos seus funcionários que criassem as condições para que ambos pudessem estar sós um com o outro, nomeadamente não deixando entrar o séquito do religioso e fechando todas as portas e janelas tão depressa quanto possível. Assim foi planeado e assim foi feito. E então, quando se encontraram frente a frente, sós, o rei retirou do seu corpo as vestes reais, pediu ao bispo que tirasse as suas vestes religiosas, e atacou-o repetidamente com um chicote.
Não é claro o que aconteceu nos momentos seguintes, a potencial violência de todo este castigo do bispo não é descrita, mas o que o cronista Fernão Lopes nos revela é que pouco depois as portas foram abertas e um tal Gonçalo Vasques de Goes, escrivão do monarca, o relembrou de que esta não era a melhor forma de administrar justiça. E toda a história parece ter ficado por aí...
Mas... pergunte-se, terá sido tudo isto verdade? Fernão Lopes, ao contar-nos este episódio do castigo do bispo, nunca menciona o nome do religioso, mas fomos capazes de descobrir algo de intrigante - quem for consultar uma listagem oficial dos bispos do Porto e depois a comparar com as datas do reinado de D. Pedro I, i.e. 1357 a 1367, poderá notar que entre os anos de 1357 e 1359 não é mencionada qualquer figura a ocupar esse lugar. Isto poderá indicar muito - terão sido os anos em que este misterioso bispo ocupou a Sé do Porto antes de ser deposto? - mas também poderá tratar-se de uma mera coincidência, já que esta situação não é caso único na mesma fonte de informação. Fora essa informação, não encontrámos nada que afiance ou rejeite a ocorrência real deste episódio - poderá ter sido uma invenção do cronista, para demonstrar que a justiça do rei chegava até ao clero, ou um episódio bem real.
Resta uma pergunta, por hoje. Terá sido mesmo este o "castigo do Bispo" a que Teófilo Braga se referia? Não há, face à obra original e respectivo contexto da referência, qualquer hipótese de termos uma certeza mesmo absoluta, mas esta parece-nos ser uma curiosa lenda nacional que, pelo seu carácter muito único (quantas lendas de Portugal conhecem em que religiosos sejam punidos fisicamente?), seria certamente digna de nota para esse autor.