A lenda do Lobisomem (e o Tardo)
A lenda do Lobisomem (a que depois juntámos a figura portuguesa do Tardo), conta-se entre as três maiores lendas brasileiras, juntamente com as das figuras do Saci e da Mula Sem Cabeça. Agora, se já aqui falámos das outras duas figuras anteriormente, é natural que também fossemos falar desta, antes de discutirmos se esta criatura verdadeiramente existe.
A ideia de toda esta criatura, de uma figura humana que em determinadas condições adopta a forma de um lobo ou de outro animal, poderá até vir da pré-história. No entanto, a sua primeira referência mais significativa que temos a ela surge no mito grego de Licáon, em que um rei é transformado em lobo como punição divina. Agora, isto pouco assustaria fosse quem fosse - se tais acontecimentos apenas acontecessem por punição divina, poucos ou nenhuns lobisomens existiriam no mundo - mas Marcelo de Side, um autor da Antiguidade que escreveu uma obra chamada Da Licantropia (que apenas nos chegou num fragmento), considera esta uma doença bem real, dizendo sobre ela o seguinte:
Os que sofrem da doença chamada Cinantropia ou Licantropia saem durante toda a noite no mês de Fevereiro, imitando lobos e cães, passeando em redor dos cemitérios durante a noite. Podem reconhecer quem está afectado por ela pelos seguintes sinais: são pálidos, parecem fracos, têm olhos secos e não choram. (...) Também têm muita sede e feridas incuráveis nas pernas, por causa das quedas contínuas e das mordidelas dos cães. (...) [No fragmento segue-se informação, aqui irrelevante, sobre como essa doença pode ser curada.]
Isto não revela muito sobre a criatura que também pode ser conhecida como Licantropo, excepto pelo facto de nos fazer compreender que no primeiro século da nossa era, altura em que viveu este Marcelo de Side, esta era uma doença quase puramente psicológica, não configurando uma transformação verdadeira de ser humano em lobo (ou cão). Por isso, pense-se no tema por um breve momento - nos filmes e livros dos nossos dias como é que nascem estas criaturas? É frequentemente mencionada a lua cheia, a mordidela de um lobo, o simples nascimento de um pai (ou mãe) que também partilha deste poder místico, algum outro método mais mágico... mas nem sempre assim o foi, e nesse sentido a lenda do Lobisomem no Brasil é derivada de uma antiga lenda portuguesa e europeia. Segundo ela, quando uma mulher tem sete filhos consecutivos de um mesmo género sexual (sete filhas geram uma bruxa ou uma Peeira, para quem tiver essa curiosidade), esse sétimo rebento irá sofrer de Licantropia, uma ideia que não vem da Antiguidade!
A mesma lenda acrescenta, depois, que em determinadas noites essa pessoa iria ficar como louca, devendo ser trancada em casa na mais completa solidão. Não é dito que isso acontecia em noites de lua cheia, como é comum nas histórias literárias e cinematográficas, mas algumas versões que ouvimos de idosos dos nossos dias em Portugal referem que isso acontecia nas noites de sexta-feira para sábado, com pelo menos uma idosa a nos dizer que o marido de uma amiga já falecida, que era lobisomem, um dia não foi trancado nem o deixaram sair de casa, e então entrou numa espécie de coma profundo, de que só saiu já na noite seguinte. Um elemento curioso - em nenhum momento nos foi dito que a transformação em lobo era literal, mas simplesmente que quem sofria dessa espécie de "doença" ficava com o carácter metafórico de um lobo - vicioso, feroz, a uivar, etc.
Nesse contexto, a lenda brasileira, com mais ou menos detalhes, parece derivar parcialmente de uma lenda portuguesa que também existiu por toda a Europa. Contudo, hoje em dia, fruto de uma cultura cada vez mais global, este monstro no Brasil, como o de Portugal e o de tantos outros países, está a perder as suas origens e a tornar-se uma criatura com feições horizontais por todo o globo...
Mas, para terminar, será que a criatura de todo este mito ou lenda existe mesmo? Como é fácil ver pelas palavras escritas acima, a forma como hoje vemos esta criatura, hoje, resulta de um sincretismo de diversas crenças diferentes ao longo de muitos séculos. É uma ideia que se foi alterando ao longo dos tempos, sendo por isso impossível que alguma vez tenha tido uma existência real - se assim o fosse, como explicar as formas tão diversas e inconsistentes como foi sendo representada na literatura? Isso não faria qualquer sentido, excepto se se tratar de uma criatura que só nasceu da imaginação humana, e à qual cada nova geração foi adicionando um pouco mais à história, como é comum em relatos puramente ficcionais, que não assentam numa realidade física.
[Adicionado posteriormente:] Porque acrescentámos ao artigo acima esta sequência sobre uma figura puramente portuguesa, o Tardo? Porque, mais tarde, viemos a encontrar um curioso documentário nacional que não só mostra as muitas semelhanças entre as duas figuras, como também fala extensamente sobre as crenças relativas à figura a que se refere este artigo de hoje! Podem vê-lo abaixo, em três sequências relativamente curtas, que permitem ao leitor saber mais sobre o Tardo - e outras figuras dos mitos populares de Portugal - do que nós poderíamos dizer em algumas breves linhas:
Na verdade, se nem concordamos com tudo o que é dito nestes três vídeos, há que admitir explicitamente que eles apresentam o Tardo, entre outras figuras da Mitologia Popular Portuguesa, de uma forma rápida, interessante, e até com algumas histórias na primeira pessoa, o que é sempre de elogiar no nosso panorama ibérico!