Qual é a origem do Capuchinho Vermelho?
De entre os contos infantis conhecidos nos nossos dias é provável que poucos sejam tão fascinantes como o do Capuchinho Vermelho (também conhecido como "Chapeuzinho Vermelho" no Brasil). E é motivo de fascínio não pela sua agora-famosa aventura com o lobo, em si mesma, mas por toda uma história que existe por detrás da heroína. Ao longo dos séculos é possível encontrar as mais diversas versões da sua narrativa, cada uma delas mais estranha que a outra - ora uma versão em que a menina se despe para o lobo, numa estranha sessão de striptease; ora outra em que avó e neta são comidas (e não são salvas por ninguém...); uma em que o capucho tem poderes mágicos; uma em que o lobo é queimado vivo; juntamente com versões em que outros animais também entram na história; há alterações de todas as formas e feitios, mantendo-se, quase exclusivamente, o cruzamento desta jovem com um lobo. Mas, afinal, de onde vem toda esta trama? Qual é, na verdade, a origem do Capuchinho Vermelho?
Responder a essa questão implicou muita investigação e uma viagem até ao século XI da nossa era, em que Egberto de Liège escreveu a sua obra Fecunda Ratis, uma espécie de metafórica barca repleta de conhecimento linguístico. É, na verdade, um manual de exercícios de Latim, com um grau crescente de complexidade; começa por simples frases, depois conjuntos de dois versos, seguidos por pequenas histórias e algumas um pouco mais difíceis de ler. E entre essas últimas surge a seguinte sequência, que aqui traduzimos integralmente para Português:
[Título:] Sobre a menina salva dos filhotes de um lobo
O que vos conto, as pessoas do campo podem contar juntamente comigo, porque não é tão miraculoso que seja difícil de acreditar.
Um certo homem retirou uma menina da fonte sagrada e deu-lhe uma túnica de lã vermelha, nesse dia de Pentecostes em que foi baptizada. A menina, agora [já] com cinco anos de idade, saiu ao amanhecer, a pé e sem sentir o perigo. Um lobo atacou-a, levou-a para o seu antro na floresta, e deu-a aos seus filhotes para que ela fosse comida. Eles aproximaram-se logo dela e, como não a podiam magoar, começaram, livres de qualquer ferocidade, a acariciar-lhe a cabeça. "Não danifiquem esta túnica, ratinhos", disse a menina, "que o meu padrinho me deu quando me retirou da fonte."
[Moral?] Deus, criador de tudo, pacifica as almas selvagens.
Será esta a verdadeira origem do Capuchinho Vermelho? O seu autor parece dar a entender que esta era uma história bem conhecida no seu tempo, e há um elemento indisputavelmente religioso na sua trama (e.g. até surge entre outras histórias com conteúdos cristãos), com a túnica que a heroína recebeu a apresentar-se como uma prenda dada aquando do seu baptismo. O texto latino chama-lhe uma tunica, uma peça de roupa que normalmente não teria um capucho, mas se quisermos acreditar que esta história foi evoluindo com o tempo, acabando até por perder parte do seu elemento religioso, é certamente possível que represente uma forma muito embrionária de uma trama que, a longo prazo, até poderá ter tido a sua sequela, ou uma espécie de versão satírica, num relato como o que conhecemos nos nossos dias.
Atenção, isto não quer dizer que, sem qualquer dúvida, a história do Capuchinho Vermelho nasceu no século XI da nossa era. Afirmá-lo de uma forma tão simplista seria mentir. Podemos dizer, isso sim, é que existem várias narrativas muito semelhantes por toda a Europa, contadas oralmente e publicadas em livros ao longo dos séculos, e a apresentada aqui parece ser a mais antiga que une uma menina com uma peça de roupa vermelha a um lobo. Mas será isso suficiente para nos fazer aceitar que a breve trama que reproduzimos acima levou, com o passar dos séculos, a um conjunto sucessivo de versões que acabaram imortalizadas num conto de Charles Perrault, muito famoso e constantemente repetido nos nossos dias? Será que há uma relação real entre as duas histórias? Isso já é algo que não conseguimos provar sem margem para dúvidas, pelo que uma possível resposta, de natureza completamente pessoal, terá de ficar para quem ler estas linhas...