A verdade do menino nepalês linchado em Portugal
Ainda há dias aqui abordámos um tema em que a influência norte-americana estava bem presente nas palavras de António Tânger Corrêa. Não é de todo um caso único, mas porque nem todas as histórias que vamos contando têm lugar num passado remoto, decidimos aqui contar também uma que é quase dos nossos dias. Foi uma história que tomou lugar em Portugal há cerca de um mês, mas talvez seja mais correcto chamar-lhe um verdadeiro mito, pelas razões que iremos mostrar abaixo.
Há cerca de um mês apareceu em vários média portugueses uma notícia sobre uma criança de 9 anos (no 2º ciclo...), de origem nepalesa, que supostamente foi linchada numa escola da zona de Lisboa. Foi, portanto e como a própria palavra indica, atacada brutalmente por cinco colegas, enquanto que um sexto gravava toda a cena, e lhe atiravam frases de conteúdo racista e xenófobo, sem que ninguém fizesse nada. Face ao ocorrido, e mediante a fonte consultada, o tal menino apenas deixou de ir à escola, ou foi mesmo transferido para uma outra, enquanto que um dos agressores apenas foi suspenso por três dias. O que, a ser verdade, seria gravíssimo... e sê-lo-ia se não fossem umas pequenas "inverdades" no relato.
Primeiro, a instituição que trouxe o caso a público recusou-se a colaborar com a justiça (porque seria...?), mas depois lá veio dizer que, afinal de contas, a criança não era do Nepal (o que conveio, porque segundo se apurou não haviam crianças nepalesas com a idade reportada na escola em questão). E o tal linchamento, também vieram dizer que não foi a palavra correcta, que não foi bem assim. O tal vídeo, mediante a versão consultada, ou ia ser colocado nas redes sociais, ou foi efectivamente colocado no Whatsapp, ou até o tinha sido mas subsequentemente foi removido. A escola não sabia de nada, nem nenhum aluno tinha sido suspenso nas condições relatadas. Só faltaria sugerir-se que os atacantes eram brancos nascidos em Portugal, de classe média-alta, e portavam suásticas... mas, em termos mais reais e fazendo nossas as palavras de David Pontes, do Jornal Público, não se pode "garantir sequer que a agressão a uma criança nepalesa tenha acontecido". Mas então, o que aconteceu mesmo em tudo isto? Há uma pista muitíssimo importante num comunicado escrito que a associação fez na altura:
Apelamos ao respeito pela privacidade da família e outras partes envolvidas, e em particular das vítimas do episódio sucedido.
Consideramos ser da maior importância uma maior sensibilização da sociedade portuguesa e um debate responsável e construtivo na opinião pública sobre estes fenómenos de violência, discriminação, racismo, xenofobia, alertando para a sua existência. É urgente, enquanto sociedade, trabalharmos juntos no combate a manifestações e comportamentos desta natureza, e na identificação de situações de risco. O nosso foco estará, sempre, no acompanhamento a pessoas migrantes em situação de vulnerabilidade e exclusão social, e estaremos empenhados na prevenção e na desconstrução de narrativas que incitam à violência dirigida a pessoas imigrantes, entre outros grupos estigmatizados.
Lendo-se bem o segundo parágrafo, onde apresentam alongadamente a sua missão (por contraste com a brevíssima referência ao caso), o que toda esta ideia tem de especial é tratar-se de uma estratégia muito comum em associações do género em outros países, e que normalmente indica um meio-caminho para a admissão de que o reportado é maioritariamente falso - como se pôde ver pelo que depois se veio a saber, pelo excesso de detalhes e seu carácter misteriosamente mutável, e pela adição repetida de pontos chocantes - mas foi colocado a público para publicitar a própria associação e as causas que ela defende. E a verdade é que esta associação era quase desconhecida, tinha pouca importância online, mas ao fazer passar aquela notícia sofreu uma explosão de pesquisas sobre ela, como pode ser visto na imagem ali em cima. E depois, quem vai ao site ou às respectivas redes sociais é imediatamente confrontado com a ideia de doar directa ou indirectamente para eles... muito curioso!
Talvez estranhando toda esta situação, numa das redes sociais uma "Paula" decidiu confrontá-los com um comunicado do Ministério da Educação, Ciência e Inovação, onde é dito que a versão que lhes foi passada pela tal associação apresentava "detalhes e contornos distintos face à informação divulgada a um órgão de comunicação social" e "não há qualquer indício de ter ocorrido um 'linchamento' na escola da Amadora indicada pela associação" (o sublinhado no comunicado é dela). Ou seja, afinal de contas tudo aquilo não era bem como nos tinha sido dito a todos, o que é mesmo muito curioso... porque pode suscitar uma inferência digna de nota - na realidade, só inventaria um caso com contornos falsos uma associação que conhecesse em primeira mão tão poucos casos de xenofobia em escolas portuguesas, que não tinha na altura nenhum presente para referir a um jornalista!
Agora, se lerem bem a mensagem da associação apresentada acima, verão que é utilizada uma palavra pouco comum na língua portuguesa, "evidências", que vem do inglês evidence, "provas". Isso denota que quem escreveu aquelas linhas tem uma certa cultura anglófona, em que, repita-se, mais uma vez e em especial na cultura americana, este tipo de casos são muito comuns para alavancar a importância de associações defensoras em casos de racismo. Mas, talvez pela inexperiência no uso desta estratégia, menos comum em terras de Portugal, saiu-lhes um pouco o tiro pela culatra...
Na verdade, a ideia por detrás de tudo isto, e conforme já muito bem relatado no livro Hate Crime Hoax, de Wilfred Reilly*, passa por trazer a público um caso muitíssimo chocante, seja ele verdade ou não, e depois encavalitar no mesmo a missão da associação, minimizando-o posteriormente enquanto ainda se o utiliza para motivos de auto-promoção. E, se fossem obrigados a dar uma resposta à Senhora Paula - que não são... - eles diriam, como é comum nos EUA, que aquele caso afinal até não foi bem como disseram que tinha sido, mas que até poderia ter sido, e que existem muitos outros que o são mesmo, e até existem vários que são muitíssimo piores que aquele (mas sem nunca dar quaisquer detalhes, fazendo sempre soar o problema muito maior do que é)! O que agora sabemos, porém, é que não existe nem menino nepalês, nem respectivo linchamento, o que é uma vergonha, tratando-se tudo isto essencialmente de uma ficção pia para chocar a audiência e cumprir o apregoado objectivo da associação.
A proverbial montanha pariu um rato, mas se uma só pessoa doou dinheiro para eles, o objectivo de toda esta estratégia publicitária cumpriu-se mesmo. E, infelizmente, é mais uma ideia trazida da América do Norte, e os grandes culpados neste caso são os nossos jornalistas, que antes de trazerem isto a público deveriam, no mínimo dos mínimos, ter verificado se o caso era credível...
*- Falando sobre este livro de uma forma breve, ele demonstra que se até continua a existir racismo nos EUA, existe um conjunto muito significativo de casos falsos que são utilizados, de forma directa ou indirecta, para tentar manipular a opinião pública. Eles vão desde falsos casos de racismo, com contornos muito semelhantes aos do caso em questão, até homossexuais que deitaram fogo aos seus locais de trabalho e culparam supostas pessoas anti-gays (e depois receberam imenso apoio por isso...), falsa "islamofobia" (a acusadora preferiu inventar falsos "brancos" que a atacaram, em vez de dizer aos pais que tinha passado a noite a beber com o namorado...), desumanos apoiantes de Donald Trump (um opositor sempre muito fácil de demonizar em determinados exogrupos...), e muitos outros casos. Em dados pontos lê-se quase como um romance, este Hate Crime Hoax de Wilfred Reilly, pelo caricato de alguns casos que relata, e em que o aqui abordado hoje pouco destoaria.