A Verdadeira Lenda de São Vicente
A lenda de São Vicente é famosa em Portugal, e em particular na cidade de Lisboa, devido à ligação deste santo com a nossa capital. Na verdade, os momentos finais de toda a sua grande lenda até podem ser vistos no brasão da cidade:
Agora, se o brasão - com um navio e os dois corvos - ainda hoje é famoso, o que já poucos parecem saber é que quando toda a história deste santo é contada nos nossos dias, tende a sê-lo de uma forma incompleta, que faz perder um elemento muito significativo da trama. Portanto, hoje contamos cá a verdadeira lenda de São Vicente, na sua forma mais completa, para que todos os leitores a possam conhecer.
Conta-se então que este santo nasceu na cidade espanhola de Saragoça, em finais do século III da nossa era. Quando Diocleciano decidiu perseguir os Cristãos, este Vicente foi um dos muitos capturados pelos Romanos, mas por muitas torturas a que o sujeitassem ele recusou sempre abandonar a sua fé em Deus e no Cristianismo. Quando finalmente faleceu, vítima das mais brutais torturas (entre outras coisas, ele foi assado numa grelha), o corpo do mártir foi primeiro abandonado e depois atirado ao mar, flutuando durante dias até que deu à costa perto de Sagres, sendo sempre acompanhado e protegido por corvos. Foi construída uma capela a este santo no local (hoje perdida, tanto quanto foi possível apurar), e também ela foi sempre protegida por corvos. Depois, em finais do século XII e por ordem de Dom Afonso Henriques, as relíquias do santo foram trazidas para a capital de Portugal - e, como já é bem sabido, os corvos continuaram a acompanhar os restos de São Vicente, seguindo-os para a capital e gerando a curiosa imagem que ainda hoje pode ser vista no brasão da cidade - de facto, até é ele o padroeiro de Lisboa, e não São António, como muitos poderiam supor nos nossos dias!
Nesta sua forma mais completa do que é habitual, a lenda de S. Vicente permite-nos compreender que a ligação deste santo aos corvos já tinha vários séculos quando ele foi transportado para Lisboa. Mas de onde vem ela? Também podemos explicá-lo - a versão original da primeira parte de toda a lenda, que nos chegou num poema de Prudêncio (século IV), diz que quando o santo morreu, e para que os animais selvagens não pudessem destruir o corpo, um corvo - no singular, corvus - protegeu-o de todo o dano. Depois, ao longo dos séculos este pequeno papel foi crescendo, o número de animais foi sendo ampliado, e o seu papel original foi parcialmente esquecido - quando os restos do santo são trazidos para a cidade de Lisboa, ele é já puramente simbólico, até porque passados tantos séculos já não existiria muito para ser protegido.
Portanto, esta é uma daquelas lendas que ao longo dos séculos foi sendo sintetizada e reduzida apenas aos seus elementos mais fulcrais e relevantes para a presença desta figura na capital, estando as suas relíquias hoje - para quem estiver curioso, e segundo foi possível apurar - na Sé de Lisboa (e não no belo Mosteiro de São Vicente de Fora, como seria naturalmente de supor). Porém, recordar esta lenda como o fizemos aqui, com base na sua fonte literária original, é importante para que se possam compreender todos os elementos que a compõem, e em particular a razão pela qual os corvos - tipicamente dois, nas versões dos nossos dias - seguiram sempre os restos mortais do mártir...
P.S.- Uma outra curiosidade adicional, relativamente à localização do corpo deste mártir. Uma outra lenda, muito menos conhecida que as anteriores, diz que numa dada altura Afonso Henriques quis oferecer um braço deste santo para a Sé de Braga. Foi enviada uma mula de Lisboa para essa cidade, mas quando ela passou na zona do Porto estacou em frente à Sé da cidade invicta, e por muito que o tentassem ela recusou-se sempre a andar. Os fiéis depreenderam que por este "milagre" o santo dizia não querer ir para o local a que estava originalmente destinado, e então o braço de São Vicente ficou alojado no local próximo do qual esta mula um dia estacou...