As Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz
Uma tema como as Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz não é provavelmente algo que o leitor comum esperasse vir a encontrar por aqui. Porém, sentimos a necessidade de o abordar não só porque foi há apenas alguns dias que se celebrou mais um aniversário do falecimento da segunda - tal tragédia teve lugar a 18 de Julho de 1991 - mas porque nos podem demonstrar algo de estranhamente importante, que é o facto de até os grandes heróis terem os seus próprios pés de barro, uma espécie de face (in)visível que os aproxima muito mais de cada um de nós.
Se é quase certo que a maior parte dos leitores conhecem, mais ou menos bem, Fernando Pessoa dos seus próprios tempos de escola, já a de Ofélia Queiroz poderá ser-lhes muito mais desconhecida - podemos resumir o seu papel relevante como sendo a única namorada conhecida do poeta. Por isso, num tempo em que os telefones ainda eram raros e as liberdades individuais nem sempre permitiam encontros tão fáceis entre um homem e uma mulher, é apenas natural que ambos tivessem trocado as suas cartas de amor, e algumas delas chegaram mesmo aos nossos dias e encontram-se hoje publicadas.
De que falam, então, as cartas de amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz? Desengane-se quem nelas pensava encontrar discussões filosóficas ou constantes poemas apaixonados. Quase nada disso está presente nestas epístolas. Em vez disso, o que se encontra nas linhas que trocaram - ou, pelo menos, nas que ainda tiveram a sorte de chegar aos nossos dias - são puras cartas de amor, como as que alguns de nós ainda tiveram, em outra altura, hipótese de trocar com alguém. Veja-se este curioso exemplo, da autoria do nosso famoso poeta e datada de 31 de Maio de 1920:
Bebezinho do Nininho-ninho
Oh!
Venho só quevê pâ dizê ó Bebezinho que gotei da catinha dela. Oh!
E também tive munta pena de não tá ó pé do Bebé pâ le dá jinhos.
Oh! O Nininho é pequinininho!
Hoje o Nininho não vai a Belém porque, como não sabia se havia carros, combinei tá aqui às seis o’as.
Amanhã, a não sê qu’o Nininho não possa é que sai daqui pelas cinco e meia (isto é a meia das cinco e meia).
Amanhã o Bebé espera pelo Nininho, sim? Em Belém, sim? Sim?
Jinhos, jinhos e mais jinhosFernando
Desengane-se quem pense que isto é uma brincadeira da nossa parte. Não o é. Esta é, verdadeiramente, a reprodução de uma das cartas de amor que Ofélia Queiroz em dada altura recebeu de Fernando Pessoa. É, tem de se admitir, talvez uma das mais estranhas, com o que é agora chamado baby talk, mas quem se confronta com a obra do poeta nos bancos de escola raramente tem a capacidade de o imaginar como uma figura igualmente capaz destas infantilidades. Mostram-nos quase exclusivamente uma entidade quase divina, dos vários heterónimos, de poesia com figuras clássicas e rebanhos que passeiam pelos campos... mas, enquanto isso, parecem ter-se esquecido de nos contar que também existia um homem bem real, de carne e osso, por detrás de todos aqueles poemas que nos fazem desfilar pela frente do nosso olhar.
Mas o interesse das cartas de amor de Ofélia Queiroz e Fernando Pessoa não fica apenas por aí. Nem sempre é fácil seguir a sua pseudo-trama - pelo conteúdo, depreende-se que existiram conversas com mais substância tidas pessoalmente, ou que o Fernandinho até andava a brincar com os seios da sua amada (as "pombinhas", como lhes chamam...) - mas aqui e ali lá surge uma ou outra carta mais digna de nota, como uma que a jovem trocou com Álvaro de Campos. O tempo já fez perder como funcionava isso - estaria o poeta completamente louco? Ou era esta uma ficção que a amada foi aceitando de bom grado? - mas levanta um conjunto de questões curiosas.
Tudo isto não pode senão levar-nos a considerar, ou a imaginar, como terá sido a vida de muitos outros poetas. Se, por exemplo, já aqui falámos de Camões e Bárbara, acreditando que ambos existiram... terá havido, em algum momento, alguma troca de correspondência com palavreados como "o meu zarolhozinho" ou "a escrava do papá"? Será que em dada altura Dante e Beatrice trocaram uma espécie de mensagens mais risqués? Ou, ainda, terá já existido algum professor, em Portugal ou no Brasil, que fez os seus alunos ler algumas destas cartas de amor, e depois, inspirados nelas, mandou-os escrever conteúdos semelhantes a quem pensam amar? São muitas, ou até mais que muitas, as perguntas que uma obra desta natureza acaba por nos deixar. Não é ficção epistolar, com verdadeiras histórias que se possam ir seguindo, mas indiscutivelmente revelam uma face muito pouco conhecida de um dos maiores poetas de Portugal.
Sendo assim, será que vale a pena lerem-se, as pouco-conhecidas cartas de amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz? Tudo depende do grau de fascínio que quem lê estas linhas tem para com o poeta. Se este não vos diz nada, dificilmente as suas epístolas - ou as que ele recebeu de volta - terão algo de notável para vocês. Mas, se até gostam da obra literária pessoana, ler este corpus literário permite-vos aceder a toda uma curiosa face obscura do autor que dificilmente alguma vez terão imaginado...
E ainda, uma última e belíssima curiosidade! Infelizmente, as cartas não abordam a totalidade da relação dos dois, contêm interregnos, mas Ophélia - não é um erro ortográfico, foi o nome com que nasceu, na altura ainda com "ph" - parece ter verdadeiramente amado Pessoa. Se a relação amorosa que tinham terminou em dada altura, por razões que as cartas nunca tornam claras - terá sido pela notória insistência da primeira num casamento? Ou por episódios de quase-violência doméstica como o visível numa das missivas? - ela parece não ter encontrado outro amor até à data da morte de poeta. Depois lá casou, desconhecemos se alguma vez teve filhos, mas está hoje sepultada no Cemitério dos Prazeres, para quem um dia desejar celebrar a memória deste amor de Fernando Pessoa por Ofélia Queiroz... fica o convite!