As lendas de Varaha e Narasimha
Na longa sequência de outras lendas dos avatares de Vishnu, contamos hoje aqui as de Varaha e Narasimha. Porém, mais do que as recontarmos com as nossas próprias palavras, como já aqui fizemos para outras (e.g. Matsya e Kurma), iremos fazer algo um pouco diferente - na Biblioteca Nacional de Portugal existe uma obra manuscrita de título Noticia Summaria do Gentilismo da Azia, de meados do século XVIII, que conta de uma forma relativamente breve muitos dos principais mitos da Índia. Entre eles contam-se, como é natural, os relativos a estes dois avatares, pelo que hoje contaremos as suas respectivas histórias com as mesmas palavras com que essa tal obra as resume, ligeiramente adaptadas para facilitar a leitura nos nossos dias:
Da terceira encarnação, a que chamam Varaha Avatar.
Na primeira época [do mundo] houve outro movimento na terra a cujo rigor ficou inclinação pelos lados e о mesmo artifice, em figura de um quadrúpede chamado Varaha, fixando os seus dentes nas extremidades da mesma terra, fez conservá-la firme daquele movimento.
Da quarta encarnaçâo a que chamam Narasimha Avatar.
Na dita primeira época [do mundo], um imperador chamado Iranne Caxiepo, filisteu muito poderoso, teve um filho chamado Pralahado : o dito imperador deu-se todo ao serviço de Shiva e conseguiu dele a felicidade de ser insensível, e de nenhum mortal, por mais ardiloso que fosse, o pudesse privar de vida humana. E como se achou nessa excelência, fulminou decretos e mandos no seu império, que pessoa alguma debaixo da pena capital adorasse a outros deuses mais que tão somente a Shiva, a quem ele dava о culto, em cuja determinaçao se praticou no dito império.
Porém, o seu filho Pralahado adorava unicamente ao omnipotente [Vishnu], e assim persistiu nessa adoração, não reconhecendo a outro algum por deus. Soube о imperador que só o seu filho preteria os seus decretos, e irado contra ele quis apurar a sua paixão, mandando-o lançar no fogo de vivas fogueiras, despenhar dos altissimos montes, e meter no mar profundo, de que ficou [sempre] vencedor este, por soccorro do omnipotente.
Por último, como a cólera do imperador não se abaixava, conduziu o filho à sua presença e perguntou-lhe onde estava o deus que ele adorava. Este respondeu que estava em toda a parte. Tornou a perguntar-lhe o mencionado imperador se estava também na coluna de pedra preta que aí estava, e disse о filho que sim, pois logo havia de mostrar о contrário, que a cabeça havia de mostrar fora dele, a qual proposição conviu o dito filho, sempre firme na omnipotência do deus, e pondo-se em oração, foi-se abrindo a dita coluna de pedra e aí foi visto Vishnu em figura humana, e arremetendo-se com furor contra о imperador, о deixou em pedaços e pegou do seu filho Pralahado e o pôs no trono imperial.
De um modo muito geral, estes dois resumos até captam os elementos mais essenciais das lendas de Varaha e Narasimha, mas (infelizmente) omitem alguns pormenores deliciosos que parecem unir as duas histórias. Na primeira delas, se o deus Vishnu tomou efectivamente a forma de um javali para salvar a terra de um conjunto enorme de terramotos que a assolavam, algumas versões atribuem essas calamidades a um deva chamado Hiranyaksha, que acabou morto por esta divindade, como mostrado ali na imagem.
Algum tempo depois (que nisto dos multiversos é sempre difícil controlar datas...), quando Vishnu tomou a estranha forma de um homem-leão, fê-lo para destruir a figura a que o texto em português chama "Iranne Caxiepo". Ora bem, este Hiranyakashipu - como ele é chamado na versão original - era irmão do causador dos tais terramotos, e então, horrorizado com o destino do seu familiar, rezou e meditou durante anos, até que o deus Shiva lhe decidiu conceder um dom. Ainda descontente com o triste destino do irmão, este deva pediu então uma quase imortalidade* - não podia ser morto durante o dia ou durante a noite; nem por homem, nem por animal; nem no interior de algum lugar, nem no exterior; entre outras limitações. Depois, quando Narasimha saiu da tal coluna negra, agarrou este monarca num abraço letal, esperou pelo momento do pôr do sol, arrastou-o para a ombreira de uma porta e devorou-lhe as entranhas, matando-o, como também mostra a imagem acima.
Se até existe esta ligação curiosa entre as duas lendas, devemos esclarecer que esta ponte entre elas não é verdadeiramente original. Ela parece ter sido adicionada a toda a história num período mais recente, possivelmente quando se estabeleceu uma espécie de cânone dos avatares de Vishnu, pelo que nas versões mais antigas Varaha veio ao mundo "apenas" para salvar o nosso mundo de enormes terramotos, enquanto que Narasimha sempre foi uma espécie de ligação entre os avatares do deus que eram animais e os que são, depois, já completamente humanos.
Para terminar, talvez mais algumas notas sobre o tal livro Noticia Summaria do Gentilismo da Azia. Por um lado, ele preserva-nos uma visão ocidental de algumas das principais lendas da Índia, juntamente com algumas belíssimas representações alusivas a elas, cujo número varia de edição para edição (encontrámos pelo menos três, uma delas pode ser encontrada nesta página...); mas, por outro, a forma como reconta algumas dessas histórias é demasiado sucinta, incompleta, difícil de seguir por quem ainda não as conhecer minimamente. É uma espécie de introdução ao tema para quem já não precisa dela, talvez mais focada para uma espécie de cristalização das crenças de uma região indiana em determinado período da sua história, do que em sumarizar, de forma contínua e bem perceptível para o leitor, as mesmas tramas. Portanto, talvez até seja um texto interessante para aprender um pouco mais sobre estes temas, mas não é indica para uma verdadeira introdução, mesmo que o título o pareça sugerir...
*- Porque não pediu ele uma imortalidade plena? Claro que é uma boa questão, mas neste caso a resposta é igualmente válida e aparece bem explícita nas lendas hindus - se foram várias as figuras que até tentaram pedir aos deuses uma imortalidade completa, estes rejeitam sempre concedê-la, propondo depois alternativas que, impreterivelmente, têm alguma falha e acabam por levar à destruição de quem as pediu.