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Mitologia em Português

13 de Fevereiro, 2023

As "Trovas à Morte de Inês de Castro", de Garcia de Resende

Quando se fala de histórias de amor em Portugal, é certo e sabido que a mais famosa de todas elas é a de Pedro e Inês. Já aqui contámos a sua "lenda" - se é correcto chamar-lhe isso - mas o que trazemos aqui hoje é ligeiramente diferente, as chamadas Trovas à Morte de Inês de Castro, da autoria de Garcia de Resende. O que elas têm de muito especial é que se tratam da mais antiga composição poética sobre o tema - ou, pelo menos, a comprovadamente mais antiga que ainda nos chegou. Como tal, para celebrar o dia de hoje decidimos aqui trazer esse poema, com algumas pequenas adaptações para facilitar a leitura nos dias de hoje.

Recorde-se que a composição que aqui reproduzimos há dois anos fala desta morte do ponto de vista de Dom Pedro. Já esta fá-lo na voz da própria Inês de Castro, numa composição impossível em essa figura nacional nos traz, pela sua própria boca, os derradeiros eventos de que foi vítima. Há mais a dizer sobre eles, claro está, mas já voltaremos ao tema. Por agora, leia-se a própria composição, estas trovas a Inês de Castro de Garcia de Resende:

As Trovas à Morte de Inês de Castro, de Garcia de Resende

Qual será o coração
tão cru e sem piedade
que lhe não cause paixão
uma tão grande crueldade
e morte tão sem razão?
Triste de mim, inocente,
que, por ter muito fervente
lealdade, fé, amor
ao príncipe, meu senhor,
me mataram cruamente!

A minha desventura
não contente de acabar-me,
por me dar maior tristura
me foi pôr em tanta altura,
para de alto derribar-me;
que, se me matara alguém,
antes de ter tanto bem,
em tais chamas não ardera,
pai, filhos não conhecera,
nem me chorara ninguém.

Eu era moça, menina,
por nome Dona Inês
de Castro, e de tal doutrina
e virtudes, que era digna
de meu mal ser ao revés.
Vivia sem me lembrar
que paixão podia dar
nem dá-la ninguém a mim.
Foi-me o príncipe olhar,
por seu nojo e meu fim.

Começou-me a desejar,
trabalhou por me servir;
Fortuna foi ordenar
dois corações conformar
a uma vontade vir.
Conheceu-me, conheci-o,
quis-me bem e eu a ele,
perdeu-me, também perdi-o:
nunca até à morte foi frio
o bem que, triste, pus nele.

Dei-lhe a minha liberdade,
não senti perda de fama;
pus nele minha verdade,
quis fazer sua vontade,
sendo muito formosa dama.
Por me estas obras pagar
nunca jamais quis casar;
pelo qual aconselhado
foi el-rei que era forçado,
pelo seu, de me matar.

Estava muito acatada,
como princesa servida,
em meus paços muito honrada,
de tudo muito abastada,
de meu senhor muito querida.
Estando muito de vagar,
bem fora de tal cuidar,
em Coimbra, de assossego
pelos campos do Mondego
cavaleiros vi somar.

Como as coisas que hão de ser
logo dão no coração,
comecei entristecer
e comigo só dizer:
"Estes homens onde irão?”
E tanto que perguntei,
soube logo que era el-rei.
Quando o vi tão apressado,
meu coração trespassado
foi, que nunca mais falei.

E quando vi que descia,
saí à porta da sala,
adivinhando o que queria;
com grande choro e cortesia
lhe fiz uma triste fala.
Meus filhos pus de redor
de mim com grande humildade;
muito cortada de temor
lhe disse: — "Havei, senhor,
desta triste piedade!"

"Não possa mais a paixão
que o que deveis fazer;
metei nisso bem a mão,
que é de fraco coração
sem porquê matar mulher;
quanto mais a mim, que dão
culpa não sendo razão,
por ser mãe dos inocentes
que ante vós estão presentes,
os quais vossos netos são."

"E têm tão pouca idade
que, se não forem criados
de mim só, com saudade
e sua grande orfandade
morrerão desamparados.
Olhe bem quanta crueza
fará nisto Vossa Alteza;
e também, senhor, olhai
pois do príncipe sois pai,
não lhe deis tanta tristeza."

"Lembre-vos o grande amor
que me vosso filho tem,
e que sentirá grande dor
morrer-lhe tal servidor
por lhe querer grande bem.
Que, se algum erro fizera,
fora bem que padecera
e que estes filhos ficaram
órfãos tristes e buscaram
quem deles paixão houvera;"

"Mas, pois eu nunca errei
e sempre mereci mais,
deveis, poderoso rei,
não quebrantar vossa lei,
que, se morro, quebrantais.
Usai mais da piedade
que de rigor nem vontade,
havei dó, senhor, de mim,
não me deis tão triste fim,
pois que nunca fiz maldade!”

El-rei, vendo como estava,
houve de mim compaixão
e viu o que não olhava;
que eu a ele não errava
nem fizera traição.
E vendo quão de verdade
tive amor e lealdade
ao príncipe, cuja são,
pôde mais a piedade
que a determinação;

Que, se me ele defendera
que seu filho não amasse,
e lhe eu não obedecera,
então com razão pudera
dar-me a morte que ordenasse;
mas vendo que nenhuma hora,
desde que nasci até agora,
nunca nisso me falou,
quando se disto lembrou,
foi-se pela porta fora,

Com seu rosto lacrimoso,
com propósito mudado,
muito triste, muito cuidoso,
como rei muito piedoso,
muito cristão e esforçado.
Um daqueles que trazia
consigo na companhia,
cavaleiro desalmado,
de atrás dele, muito irado,
estas palavras dizia:

"Senhor, vossa piedade
é digna de repreender,
pois que, sem necessidade,
mudaram vossa vontade
lágrimas de uma mulher.
E quereis que abarregado,
com filhos, como casado,
este, senhor, vosso filho?
De vós mais me maravilho
que dele, que é namorado."

"Se a logo não matais,
não sereis nunca temido
nem farão o que mandais,
pois tão cedo vos mudais
do conselho que era havido.
Olhai quão justa querela
tendes, pois, por amor dela,
vosso filho quer estar
sem casar e nos quer dar
muita guerra com Castela."

"Com sua morte escusareis
muitas mortes, muitos danos;
vós, senhor, descansareis,
e a vós e a nós dareis
paz para duzentos anos.
O príncipe casará,
filhos de bênção terá,
será fora de pecado;
que agora seja anojado,
amanhã lhe esquecerá.”

E ouvindo seu dizer,
el-rei ficou muito torvado
por se em tais extremos ver,
e que havia de fazer
ou um ou outro, forçado.
Desejava dar-me vida,
por lhe não ter merecida
a morte nem nenhum mal;
sentia pena mortal
por ter feito tal partida.

E vendo que se lhe dava
a ele toda esta culpa,
e que tanto o apertava,
disse àquele que bradava:
"Minha tenção me desculpa.
Se o vós quereis fazer,
fazei-o sem mo dizer,
que eu nisso não mando nada,
nem vejo essa coitada
por que deva de morrer."

Dois cavaleiros irosos,
que tais palavras lhe ouviram,
muito crus e não piedosos,
perversos, desamorosos,
contra mim rijo se viram;
com as espadas na mão
me atravessam o coração,
a confissão me tolheram;
este é o galardão
que meus amores me deram.

 

Volte-se agora ao tema da "lenda" e da composição deste poema de Garcia de Resende. É notável que, para evitar o problema da potencial impunidade de Dom Afonso IV, pai de Dom Pedro, o poeta o tenha representado como uma figura plena de compaixão, que nem sequer queria mesmo matar Inês, e que a vê sem quaisquer culpas onde outros as queriam colocar. Não é ele o culpado pela morte, mas sim uns tais cavaleiros sem nome, provavelmente aqueles que o filho do rei viria a condenar anos mais tarde. Esta é uma espécie de interessante jogo de desculpabilização que pode levantar uma boa questão - quem foi, de facto, o responsável pela morte? Será que o rei da altura nada teve a ver com o que sucedido, contrariamente à forma como muitos o representam hoje? Na versão destas Trovas à Morte de Inês de Castro ele não é uma pessoa má, demonstra-se até compassivo, mas... qual terá sido a verdade histórica no episódio? A resposta fica para terceiros, para quem tenha estudado melhor o tema, porque aqui o que nos interessa é a lenda, e essa ora culpa o rei, ora o afasta das acusações...

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