"Cortes de Júpiter", de Gil Vicente (e uma Moura Encantada!)
Entre as muitas obras de Gil Vicente esquecidas nos nossos dias conta-se Cortes de Júpiter. O "Júpiter" do título é, como não poderia deixar de ser, o Zeus dos Romanos, que nesta peça de teatro - ou tragicomédia, se preferirem - convoca as suas cortes para definir uma protecção para Beatriz de Portugal, filha do Rei Dom Manuel I. Ela preparava-se para viajar por mar para Sabóia no ano de 1521, e então os preparativos dos deuses pagãos para assegurar que essa viagem corre bem é o centro da trama desta composição.
Para os leitores dos nossos dias, estas Cortes de Júpiter já não são tão interessantes como, por exemplo, o Auto da Barca do Inferno, mas merecem ser referidas por cá em virtude do facto de apresentarem dois momentos muito curiosos. No primeiro deles, os vários elementos da corte, que iam então acompanhar a princesa na sua viagem, vão sendo transformados em peixes, o que talvez até possa ter inspirado o Padre António Vieira para o seu agora famoso Sermão de Santo António aos Peixes.
Já o segundo momento que aqui apresentamos nestas Cortes de Júpiter é mais notável por ser, possivelmente, uma das mais antigas referências literárias a uma Moura Encantada. Apresentámos essas figuras cá antes, tal como elas eram conhecidas (quase) nos nossos dias, mas esta obra de Gil Vicente tem a particularidade de captar um momento muito específico da evolução da crença nas mesmas. Assim, além de estar encantada (de uma forma desconhecida), ela é aqui apresentada como portando três elementos - "um anel seu encantado", "um dedal de condão" e um "precioso terçado que foi no campo tomado depois de morto Roldão"* - cujos significados são, muito convenientemente, depressa revelados - "o anel para saber o que se faz pelo mundo", "o dedal é tão fecundo que tudo lhe fará trazer" e "o terçado para vencer". Igualmente digna de nota é a estranha forma como esta Moura Encantada, alguns momentos depois, nos fala (reproduzimos aqui apenas as primeiras duas frases, a título de exemplo), o que enfatiza bem o seu carácter estrangeiro:
Mi no xaber que exto extar, / Mi no xaber que exto xer, / Mi no xaber onde andar. / Alah xaber divinar, / Lo que extar Alah xaber; / Alah xaber que es aquexto, / Alah xaber y yo no; / Alah xaber max que yo, / Alah, digirme que ex exto.
E ainda nos conta um pouco mais sobre os elementos mágicos que tinha consigo:
Exte dedal Alah quebir / Extar de mãe de Mahomad. / Señora, quanto box pedir, / él fager lugo venir. / (...) Exte anel de condon / Perguntalde box à él, / Y él dará a box razon / De quantos xacretos xon. / Tudo box xaber por él.
Claramente, não é muito o que se pode aprender sobre as Mouras Encantadas nestas Cortes de Júpiter, mas ao leitor é, no mínimo, dado a entender que na altura de Gil Vicente se acreditava que elas possuíam um conjunto de tesouros mágicos de proveniências lendárias. Talvez assim se explique melhor aquela obsessão, ainda existente quase nos nossos dias, de uma busca pelos tesouros dos Mouros, agora muito reduzidos a pentes de ouro e figos dourados, por um natural esquecimento das personagens heróicas e religiosas que outrora se lhes associavam.
Mas, deixando agora de lado essas Mouras, vale a pena, hoje em dia, ler estas Cortes de Júpiter de Gil Vicente? Não cremos, apenas e somente porque a peça tem, nesta sua forma original, pouco para oferecer aos nossos leitores. Tem dois momentos curiosos, os já apresentados acima, mas fora isso não é uma obra que, vulgarmente, possa agradar ao leitor comum.
*- Sobre este "precioso terçado que foi no campo tomado depois de morto Roldão", o herói nomeado não é senão Rolando, um famoso cavaleiro da França Medieval. O que o texto português não torna claro é se o "terçado", ou espada, portado pela Moura é de facto a Durandal ou Duridana deste herói, ou uma qualquer outra retirada do mesmo campo de batalha...