"Crónica dos Tempos Passados", de Nestor
A Crónica dos Tempos Passados, atribuída a um monge que se conhece quase apenas como Nestor, é uma de aquelas obras que apesar de poucos lerem tem uma importância cultural muito significativa. Isto porque, como um dos seus nomes alternativos indica - Crónica Primária - é a mais significativa crónica histórica para as ocorrências dos primeiros séculos dos impérios eslavos, com especial incidência nas zonas de Kiev e de Novgorod (a tal cidade do menino Onfim, nascido no século seguinte ao da composição deste documento). Portanto, que nos conta ela?
Seguindo uma ideia que já vinha dos autores cristãos dos primeiros séculos da nossa era, essencialmente esta Crónica dos Tempos Passados conta a história do império dos Rus desde o início dos tempos, na versão cristã (i.e. Jardim do Paraíso, Arca de Noé, etc.), até aos dias em que se escreveram as suas últimas linhas, nas primeiras décadas do século XII. Parece ter sido uma construção habitual na Idade Média e nos séculos seguintes - a "nossa" Monarquia Lusitana, de Bernardo de Brito, também faz algo semelhante - mas esta obra tem um pormenor muito curioso, um momento de charneira significativo, que é uma ênfase enorme no momento da conversão dos Rus aos Cristianismo.
Se até esse instante tudo vai sendo contado de uma forma mais ou menos breve, esse processo de conversão religiosa é explicado com grande detalhe, chegando a crónica a relatar os argumentos que foram utilizados - se mesmo reais, ou apenas lendários, não é possível sabermos - e uma breve história dos eventos bíblicos, na qual se fundem as verdadeiras crenças com um pouco da evolução mitológica que o Cristianismo foi sofrendo ao longo dos séculos. E isto tem uma consequência curiosa - se até essa conversão a obra parecia ser maioritariamente histórica, sem muitos mitos ou lendas (com excepção dos iniciais, aqueles do início do mundo), só já depois da conversão é que começam a aparecer referências à magia, ao Paganismo e a elementos religiosos dos "opositores", algumas das quais com uma certa piada. Veja-se um breve exemplo, que terá tido lugar por volta do ano de 1071 d.C.:
Nesta altura um mago apareceu, inspirado pelo Diabo. Veio a Kiev e informou os habitantes que após cinco anos o [Rio] Dnieper iria fluir para trás e que os diversos países iriam mudar as suas localizações, de forma que a Grécia iria estar onde o país dos Rus estava, o país dos Rus onde estava a Grécia, e todas as outras terras iriam também ser deslocadas de uma forma semelhante. Os ignorantes acreditaram nele, mas os fiéis ridicularizaram-no e disseram-lhe que o Diabo estava apenas a conduzi-lo à sua ruína. E isto aconteceu, porque no decorrer de uma noite este homem desapareceu completamente.
São muitas outras as pequenas histórias que se incluem nessa segunda parte da Crónica dos Tempos Passados, algumas mais giras do que outras, mas a sua leitura tem uma consequência política interessante - sucintamente, deveria ser a Rússia a pertencer à Ucrânia, visto que Kiev parece ter sido, nessa altura, a primeira grande cidade eslava, como a vida de Olga de Kiev, hoje santa, permite atestar.
Para terminar as linhas de hoje, talvez esta não seja uma obra cuja leitura dê muito prazer a quem se interessa menos pela História - os elementos mitológicos e lendários aqui presentes parecem ser poucos e breves - mas é, como já foi referido acima, um texto importante para se compreender os primeiros séculos da cultura eslava, mesmo que nem sempre se consiga compreender onde termina a ficção e começa a completa realidade.