Dioniso e o mito da origem do vinho
Que Dioniso era o deus grego do vinho e da vinha é provável que já todos os leitores saibam. Ele tem diversos mitos associados - já aqui contámos, por exemplo, as histórias que o unem a Penteu, aos piratas, a Prosimno, e até ao seu simbólico antecessor, o estranho Zagreu, entre outras - mas a sua sequência mitológica mais evidente e mais significativa é, como nunca poderia deixar de ser, a do mito da origem do vinho. E é essa história que aqui decidimos contar hoje, de forma breve, mas também com uma citação tão bela que achámos que tinha mesmo de ser apresentada aqui.
Conta-se, portanto, que em dado momento das suas muitas aventuras o deus Dioniso conheceu um jovem por quem se apaixonou. Ele chamava-se Âmpelo, e ambos nutriam uma enorme paixão um pelo outro, mas este acabou por falecer em virtude de um acidente (ou de uma vingança de outro deus)... os detalhes variam mediante a versão da história, mas todas elas dizem que o famoso filho de Zeus, na sequência dessa morte, depois criou a vinha e o vinho para homenagear eternamente aquele que tanto amava. E toda essa ideia é captada de uma forma belíssima na Dionísiaca de Nono de Panópolis; já cá citámos pelo menos duas vezes essa enorme obra - falando sobre a vida e a morte e de um episódio jocoso - mas esta sequência é de tal forma notável que achámos que a deveríamos apresentar aqui na sua forma completa. Para contexto, é um monólogo do deus Dioniso imediatamente após a criação dos dois elementos que o tornaram famoso - i.e. o vinho e a vinha:
Ó Âmpelo! Este é o néctar e a ambrósia do meu Zeus que criaste! Apolo tem duas plantas favoritas, mas ele nunca comeu o fruto de louro ou bebeu do lírio! O trigo não produz uma bebida doce, com a tua licença, Deméter! Eu fornecerei não apenas a bebida, mas também a comida para os homens mortais! O teu destino também é invejável, ó Âmpelo! Verdadeiramente, até os fios da Moira foram transformados em femininos para ti e para a tua beleza; para ti, o próprio Hades se tornou misericordioso; para ti, a própria Perséfone mudou o seu temperamento duro e te salvou vivo na morte para o irmão Baco. Não morreste como Atimnio está morto; não viste a água do Estige, o fogo de Tisífone, o olho de Megera! Ainda estás vivo, meu rapaz, mesmo se morreste. A água do Letes não te cobriu, nem o túmulo que é comum a todos, mas a própria terra encolheu-se de cobrir a tua forma! Não, o meu pai fez de ti uma planta em honra ao seu filho; o senhor filho de Cronos transformou o teu corpo em doce néctar. A Natureza não gravou aí nas tuas folhas sem lágrimas, como nos cachos inscritos de Terapne. Guardas a tua cor, meu rapaz, mesmo nos teus brotos. O teu fim proclama o brilho dos teus membros; o teu corpo corado ainda não te deixou. Mas eu nunca deixarei de vingar a tua morte; derramarei o teu vinho em libação ao teu assassino, o vinho de sua vítima! As suas belas pétalas envergonham as Hamadríades; o sumo dos teus cachos perfumados trazem-me um sopro do teu amor. Conseguirei alguma vez misturar a maçã na taça? Conseguirei deixar cair o sumo de figo na taça de néctar? O Figo e a maçã têm a sua graça até onde os dentes alcançam; mas nenhuma outra planta pode rivalizar com as tuas uvas - nem a rosa, nem o narciso tingido, nem a anémona, nem o lírio, nem o lírio-dos-vales, é igual à planta de Baco! Pois, com as novas correntes de tua frutificação esmagada, a tua bebida conterá todas as flores: essa única bebida será uma mistura de todas, ela combinará num só o perfume de todas as flores que sopram, as tuas flores enfeitarão todas as ervas da Primavera e a relva do prado!
Dá-me o melhor, Senhor da Arquearia, porque tu entrelaçaste o teu cabelo imutável com a tua grinalda de pétalas dolorosas! Ai, ai, está gravado nessas tuas folhas; e se o Senhor da Arquearia usa a sua grinalda no jardim, eu sirvo o meu vinho doce, eu ponho uma bela grinalda, eu absorvo Âmpelo para que esteja em casa no meu coração por esse delicioso gole. Brilhante, dá lugar a "Uvasfinas"! O sangrento derrama sangue para Ares, o Vinífero derrama para Dionísio o orvalho rubro da uva encharcada de vinho!
Deméter, foste derrotada com Palas! Pois as azeitonas não produzem alegria no coração, o trigo não enfeitiça um homem! A pêra tem uma fruta melada, a murta cresce em flores fragrantes, mas elas não têm uma fruta que encante o coração para afastar as preocupações do Homem! Eu sou melhor do que todos vocês; pois sem o meu vinho não há prazer na mesa, sem o meu vinho a dança não tem encanto. Deusa dos olhos brilhantes, bebe o fruto da tua oliveira, se puderes! A minha frutificação com os seus gloriosos presentes venceu a tua árvore. Com a tua oleosa oliveira, os atletas esfregam os seus corpos, sem deleite; mas o tristemente afligido que deu uma esposa ou uma filha ao destino comum, o homem que chora os filhos mortos, uma mãe ou um pai, quando provar do vinho delicioso, sacudirá o odioso fardo da dor sempre crescente.
Ó Âmpelo, alegras o coração de Baco mesmo após a morte! Vou embeber a tua bebida por todo o meu corpo. Todas as árvores da floresta inclinam a cabeça em volta, como alguém em oração curva o pescoço. A antiga palmeira inclina as suas folhas ascendentes, tu estendes os teus pés em torno da macieira, agarras as tuas mãos na figueira e seguras; elas sustentam a tua frutificação como escravas a sua senhora, enquanto escalas o ombro de tuas servas com as tuas gavinhas se empurrando e enrolando e tremendo, enquanto os ventos sopram no teu rosto as delicadas folhas multicoloridas de tantas árvores vizinhas com seus cachos espalhados, como se dormisses e eles te refrescassem com um sopro suave. Assim, a criada agita um leque leve, como é seu dever, e faz um vento fresco para o seu rei. Se trouxeres contigo as ameaças do meio-dia de Faetonte, ainda assim o vento etésio vem antes das tuas uvas, acalmando a sede da estrela sedenta da ardente Maira, quando o curso da temporada de verão aquece o teu suco maduro com o vapor de Sírio.
Assim se conta não só o mito da origem do vinho, tal como ele existia na Grécia Antiga, mas também a sua interrelação com o próprio deus Dioniso e a sua respectiva história, contada de uma forma bastante bonita. Esperamos, portanto, que gostem de conhecer este momento de uma obra da Antiguidade que ainda hoje é muito pouco lida!