Dr. Seuss, contra a censura dos nossos dias
Normalmente não abordaríamos temas como estes, mas hoje pareceu-nos importante escrever sobre Dr. Seuss, contra a censura dos nossos dias. Porque ela ainda existe, apesar de muitas pessoas preferirem olhar para o lado, assobiar e negar tudo. E explicamos o porquê. Anteontem, a empresa que publica os livros de Dr. Seuss - autor americano conhecido pela sua estranha imagética e versos para crianças - fez o seguinte comunicado, que aqui citamos no original inglês:
Dr. Seuss Enterprises, working with a panel of experts, including educators, reviewed our catalog of titles and made the decision last year to cease publication and licensing of the following titles: And to Think That I Saw It on Mulberry Street, If I Ran the Zoo, McElligot’s Pool, On Beyond Zebra!, Scrambled Eggs Super!, and The Cat’s Quizzer. These books portray people in ways that are hurtful and wrong.
Estranhámos estas palavras. Dr. Seuss, mesmo para quem só o conheça de uns filmes recentes que já passaram várias vezes em Portugal, não é propriamente um autor ofensivo. Pelo contrário, talvez possamos dizê-lo autor de páginas completamente malucas - no bom sentido da palavra! - mas nunca encontrámos numa das suas obras algo que merecesse ser censurado. Portanto, decidimos adquirir cópias de cada um desses seis livros para crianças e ver o que contêm.
And to Think That I Saw It on Mulberry Street é um livro sobre um menino que ao passar na rua e ver uma carroça a ser puxada por um cavalo, imagina todo um conjunto de fantasias. Depois, no contexto de uma parada, ele imagina a seguinte ocorrência, em que duas personagens se juntam ao evento:
O autor utiliza a palavra Chinaman - mesmo se tentarmos, de propósito, ser o mais ofensivos possível, poderia então vir a ser algo como "Chinoca" - como rima para Magician. Num livro publicado em 1937.
If I Ran the Zoo é a história de um menino que vai ao Jardim Zoológico e decide que conseguiria fazer melhor do que o gestor actual do espaço. Tem a ideia de popular o espaço com toda a espécie de criaturas fantásticas, de que uma das mais giras - na nossa opinião - é um pequeno e querido veado com chifres gigantescos.
Porém, na mesma história aparecem estas representações de alguns povos pelo mundo fora. Num livro publicado em 1950. Como seria possível distinguir os vários povos sem o recurso a estereótipos pictóricos é algo que desconhecemos por completo.
McElligot's Pool é sobre uma criança que ao pescar numa pequena poça de água, imagina que esta tem comunicação com um largo oceano, onde poderia até conseguir pescar toda a espécie de peixes completamente fantásticos.
Não encontrámos absolutamente nada de errado neste livro, publicado em 1947. Se tentássemos mesmo sentir-nos ofendidos por coisas menores, seguindo o contexto do livro anterior encontrámos três representações de povos pelo mundo fora que podem ser consideradas estereótipos.
Em On Beyond Zebra, um menino é chamado ao quadro na escola para desenhar as letras do alfabeto. Quando chega ao Z, para Zebra, decide continuar e criar todo um conjunto de novas letras para poder escrever realidades inimagináveis.
Novamente, não encontrámos nada de incorrecto neste livro, publicado em 1955, mas se o tentássemos fazer de forma muito absurda, poderíamos apontar que um árabe é representado como na imagem acima. Só isso.
Em Scrambled Eggs Super uma criança tenta fazer os derradeiros ovos mexidos. Para isso, em vez de usar ovos de galinha, ele decide encontrar as criaturas mais exóticas possíveis e obter os seus ovos. No final, acaba com uma cozinha cheia de ovos de todas as formas e feitios e faz uns ovos mexidos nunca vistos.
Novamente, não encontrámos nada de errado nesta obra, com excepção - e, novamente, frisando que tivemos de nos questionar bastante - das duas representações acima, de um esquimó e um turco. Num livro publicado em 1953.
Finalmente, em The Cat's Quizzer: Are You Smarter Than the Cat in the Hat?, este possivelmente já um pouco conhecido em Portugal por estar relacionado com O Gato do Chapéu (que existe em tradução portuguesa e em filme), são feitas N questões completamente estapafúrdias ao jovem leitor. Alguma delas são verdadeiramente fascinantes, como pode ser visto abaixo:
Publicado em 1976, também não fomos capazes de encontrar nada de particularmente ofensivo nesta obra. Algumas perguntas são um pouco parvinhas - e.g. naturalmente que as mulheres não podem ser reis, mas podem ser rainhas, e esse nome é-lhes dado mesmo quando são as maiores representantes de uma monarquia - mas isso não tem nada de errado. É suposto serem-no, como se subentende por todo o conteúdo da obra, até pelo facto de nem todas elas terem respostas no final, dando a entender que não são, na verdade, a sério. É só uma brincadeira!
Face ao conteúdo destes livros, e à possibilidade de eles serem vistos como hurtful and wrong, não podemos deixar de nos questionar se estaremos a criar uma geração capaz de se ofender por tudo e por nada. Por exemplo, há muitos anos existia um estereótipo no Brasil, e em diversos países do mundo, que dizia que as mulheres portuguesas tinham (sempre?) bigode - e ninguém se ofendia por isso! Ou, quando num filme vemos uma tourada a ter lugar numa praça de touros, associamo-la logo a Espanha - e ninguém se ofendia por isso! Mesmo no nosso país, quando se contam anedotas sobre os alentejanos, padres, alfacinhas ou estudantes de Coimbra, ninguém se ofendia por isso!
Parece-nos muito preocupante que alguém seja capaz de olhar para as obras de Dr. Seuss e encontre nelas razão para censura. Quem o faz, ainda para mais em obras infantis de conteúdo frequentemente jocoso, certamente que nunca leu obras mesmo ofensivas. O público tem, ou pelo menos deveria ter, a oportunidade de decidir por si mesmo, o que pretende ler. Deveria, igualmente, ter a capacidade para compreender que as obras literárias foram escritas num dado contexto histórico e cultural, que não se deve tentar negar. Um texto escrito no século II a.C. não deve ser julgado pela mesma bitola de um texto do século XV, ou um do ano de 1955. Juntar tudo no mesmo saco e, depois, aplicar a mesma visão a todos eles é de loucos. Por isso, tivemos de escrever este texto sobre Dr. Seuss, contra a censura dos nossos dias, já que a situação nos parece absurda demais. Estes livros não têm nada de verdadeiramente errado, nem se deve julgar que sim, e quem quiser pensar o contrário, deixamos-lhe apenas o convite para que leia as obras completas do Marquês de Sade e ganhe uma nova perspectiva das suas próprias opiniões.