Duas lendas da Dama dos Pés de Cabra
Existem, em Portugal, pelo menos duas lendas associadas a uma Dama dos Pés de Cabra. Uma é mais famosa que a outra - na verdade, até foi preservada por Alexandre Herculano - mas achámos que se íamos recordar uma delas também o poderíamos fazer para a outra.
A primeira lenda de uma Dama dos Pés de Cabra vem da Beira Alta, de uma vila chamada Marialva, e fala-nos de uma mulher que viria a dar o nome a esse local. Ela vivia num pequeno castelo, e a sua beleza sempre atraiu uma infinidade de pretendentes, mas a cada um deles ela repetia sempre a mesma coisa - "Só caso com quem me trouxer uns sapatos que me sirvam."
Um dado cavaleiro, querendo então casar com ela, contactou um sapateiro local... mas como podia este fazer sapatos para alguém cujos pés nunca viu? Com ajuda externa de uma aia da desejada, decidiu espalhar farinha no quarto da jovem; depois, quando esta acordou pela manhã, saiu da cama e a forma dos seus pés ficou marcada no chão, possibilitando a criação de um sapato com essa forma.
Depois, o cavaleiro ofereceu esses estranhos sapatos à sua amada Maria Alva... mas esta, horrorizada pelo facto das pessoas já conhecerem o seu segredo, atirou-se da torre do castelo e desapareceu misteriosamente!
Já a segunda lenda de uma Dama dos Pés de Cabra é muito mais famosa, pelo que apenas será aqui apresentada de uma forma muito breve. Segundo ela, enquanto um nobre caçava pela floresta encontrou uma mulher lindíssima e apaixonou-se instantaneamente. Querendo casar com ela, pediu-a automaticamente em casamento, e ela aceitou-o com uma única condição - que o futuro marido jamais voltasse a fazer o sinal da cruz.
Casaram e tiveram filhos. Anos mais tarde, enquanto estavam a jantar, um dos cães do casal matou o outro, em disputa por um pedaço de javali. Chocado com toda a situação, o nobre bateu três vezes num pedaço de madeira e fez o sinal da cruz. Nesse momento ouviu-se então um grito horrendo e a estranha esposa desapareceu... e se se seguiram outras aventuras, ela nunca mais voltou aos braços do seu marido!
O que podemos acrescentar sobre estas duas lendas da Dama dos Pés de Cabra? Se no primeiro caso Maria Alva tinha pés de cabra, esse facto é tratado apenas como um defeito genético, sem nada de sobrenatural. Já no segundo caso, que até é o de uma lenda medieval, tudo é diferente - essa Dama dos Pés de Cabra, que prima pela ausência de um nome mais real, é efectivamente uma criatura das trevas, o Diabo ou um dos seus demónios, sem qualquer dúvida. Por isso, apesar de serem lendas que partilham um mesmo nome, elas são muito diferentes, referindo-se quase certamente a figuras distintas com uma única característica que as une.
Se existiam outras mulheres e histórias semelhantes nas lendas da Idade Média (recorde-se, por exemplo, o mito de Melusina), porque têm estas duas figuras pés de cabra? Não é fácil explicá-lo horizontalmente, mas, muitas vezes, as figuras medievais com pés de cabra são transformações do Diabo ou alguma outra figura demoníaca, como os eventos da segunda lenda facilmente nos mostram. A ideia geral vem até de tempos da Antiguidade - o Diabo tem pés de cabra por relação com o deus Pã, os Sátiros e os Faunos, que habitavam nas florestas e também tinham essa forma grotesca - e continua a ser reutilizada até aos nossos dias, em que figuras demoníacas como Baphomet continuam a ser representadas com diversas características caprinas. Mas, pelo menos em relação a Maria Alva, sabemos que essa característica não se devia ao oculto, mas a um mero defeito congénito, cuja razão de presença em toda a história já não nos parece ter chegado...