Egas Moniz - lendas, amor e fidelidade
Se são muitas as lendas associados a Egas Moniz, famoso entre nós como aio de Afonso Henriques (já cá vimos antes, por exemplo, a sua ligação a Santa Maria de Carquere), existem uma ou duas que se parecem ter destacado ao longo dos séculos, e que falam dos amores e da fidelidade associada a um nome que ou é o mesmo, ou é muito semelhante. Assim, até devido à beleza do que iremos reproduzir um pouco mais abaixo, decidimos falar destas duas lendas numa só publicação.
A primeira destas duas lendas, e discutivelmente a mais famosa (relembre-se que até aparece nos Lusíadas), conta-nos como Egas Moniz em dada altura da sua vida foi falar com Afonso VII de Leão e Castela e lhe anunciou que Afonso Henriques lhe iria prestar vassalagem. Mas mais tarde, quando o monarca português decidiu não cumprir essa promessa, o pactuante sentiu que tinha de fazer algo face à mudança das circunstâncias. Assim, apresentou-se ao rei de Leão e Castela juntamente com a mulher e filhos, todos os quatro com cordas de uma forca ao pescoço, como que a admitir o seu erro e depositando as suas vidas nas mãos do monarca. E este, verdadeiramente impressionado com toda a cena e com a infinita fidelidade daquele homem que então fitava com o olhar, perdoou-o, naquela que se foi tornando provavelmente uma das representações iconográficas mais famosas da cultura portuguesa.
Mas as lendas de Egas Moniz ainda não ficam por aqui. Uns atribuem esta segunda história à mesma figura, enquanto que outros dizem que, de facto, ela se passou com um outro homem da mesma família, um tal Egas Moniz Coelho, primo do anterior, como nos revela um documento (apócrifo) presente na Torre do Tombo. Em qualquer dos dois casos, o que a lenda diz é que esta figura amou profundamente uma dama da corte, uma tal Violante, e então lhe escreveu várias cartas e poemas. Nesse sentido, podemos reproduzir aqui dois dos segundos, que são mais interessantes para o leitor comum - a adaptação para Português (quase) dos nossos dias é do Cancioneiro Popular de Teófilo Braga:
[Primeiro poema]
Ficae-vos em boa hora
Tam chorada,
Que eu vou-me por ahi fora
De longada.
Vae-se o vulto do meu corpo
Mas eu não,
Que aos pés vos fica morto
O coração.
E se pensaes que eu vou,
Não no pensedes;
Que unido comvosco estou
E não me vedes.
Em vós meu ser, meu amor,
Que de vos nasce;
Tranças tendes de espelhar,
Lúcida face.
Não quero os olhos voltar
Tam de avesso,
Que os meus males vá contar
Do começo
Mas se eu for para Mondego
Como vou,
Carochas me façam cego
(Que já o sou!)
Se nestas penas de amor
Com que lido
Como dizeis, esfriar
O meu sentido
Amae-me assim, se quereis,
D’este modo ;
Senão, peor me achareis
Cego de todo.
Se vós a mim me deixardes....
Deos me guarde !
Que fareis vós em queimardes ?
O que já arde ?
Ora não me deixeis, não,
Que sois garrida !
E se não kirieleisão
Por minha vida.
[Segundo poema]
Bem satisfeita ficaes,
Corpo de oiro:
Alegraes a quem amaes
Que eu já moiro.
Mas peço que vos lembreis
Que vos quiz,
E que penas nào haveis
Que vos fiz.
Trocastes a Portugal
Por Castella,
E levaes-me a alma — inda mal!
Que dor hei nella!
Deixaes-me por castelhanos...
Que negra sorte!
E teceis-me mil enganos
Por me dar morte.
Vedes moiro, vedes moiro,
Violante!
Longe vá o sestro agouro
Por diante.
Vós vivei um centenarjo
Mui ditoso,
Que eu me vou para o trintario
Lagrimoso.
Se um dia á vossa lembrança
Eu vier,
Dizei: Egas, tem folgança!
Dizei si quer.
tQuando ao meu enterramento
Se tocar,
Revolvei no pensamento
O meu penar;
E quando esse castelhano
Basofiar,
Lembrae-vos que desengano
Lbe fiz já dar.
Ah ! que vos quiz e requiz
Como o vêr !...
Em cousa alguma vos quiz
Desprazer!
Não vos posso mais falar
Bem me fino....
Bem podeis imaginar
Qual sou mofino.
Tenho todo o arcaboiço
Sem feição,
Mas indo vos quero e ouço
No coração.
Vede, já vou descahindo
Nesta hora....
Vós amor ficae-vos rindo,
Muito embora.
Tenha o seu autor sido o famoso Egas Moniz, o aio, ou de um trovador da sua família (como é quase certo), é inegável que estes poemas têm o seu charme e cativam o leitor. E, por isso, pareceu-nos apenas justo recordá-los por aqui, visto que andam muito esquecidos nos dias de hoje, apesar de serem dignos representantes da poesia de amor característica da sua época.