Entre a Cruz e a Ressurreição: A Jornada de Jesus Cristo ao Inferno
Este tema de hoje, da descida de Jesus Cristo ao Inferno, provém desta quadra da Páscoa. E é um tema interessante, por já ter tido uma importância muito significativa, mas que foi sendo perdida ao longo dos séculos. Explique-se. Como ainda é bem sabido, Cristo foi crucificado "e ressuscitou ao terceiro dia, conforme as escrituras". Assim consta na oração do Credo Nicénico, como ainda a dizemos hoje, e em Latim era dito "et resurrexit tertia die, secundum Scripturas". Porém, nas versões mais antigas da oração, como o Credo dos Apóstolos, surge uma frase um pouco diferente - "descendit ad inferos, tertia die resurrexit a mortuis", que é como quem diz, "desceu ao Inferno, e ao terceiro dia ressuscitou dos mortos". Ou seja, nas mais antigas tradições da Igreja Católica, havia o conhecimento de uma aventura que não é mencionada de forma directa na Bíblia, segundo a qual entre o período da sua morte e ressurreição, Jesus Cristo foi ao reino dos mortos fazer "algo".
Agora, quando abordamos temas como estes, actualmente pouco conhecidos mas relacionados com a religião católica, existem alguns leitores que levam a mal. Assim sucedeu, por exemplo, quando falámos sobre um suposto filme em que Jesus era representado como homossexual - que, recorde-se, afirmámos ter sido um mero mito (poucos parecem ter lido essa parte). Portanto, importa aqui dar duas provas iconográficas de que este episódio extra-bíblico já foi outrora muito famoso:
Respectivamente da autoria de Albrecht Dürer (século XVI) e Bartolomé Bermejo (século XV), estas duas imagens apresentam precisamente o que se pensava que Jesus Cristo foi fazer ao Inferno durante o período que teve lugar entre a sua morte e ressurreição. Iconograficamente, essa explicação já não é muito clara para o leitor comum. Como tal, importa esclarecê-lo de uma forma bastante directa - segundo se dizia, este filho de Deus tinha descido ao Inferno para de lá resgatar todas as figuras, mais ou menos bem-comportadas, que tinham vindo ao mundo antes da sua morte. Quem é que ele resgatou nessa altura nem sempre é apresentado de uma forma completamente consistente, mas muitas vezes referem-se, por exemplo, Adão e Eva, o Rei Salomão, João Baptista... e até figuras como Sócrates (o filósofo), pela sua aparente crença num único deus!
Que provas existem de que os Antigos, mesmo já nos primeiros séculos da nossa era, conheciam estes eventos associados a Jesus Cristo? Como já se disse antes, a Bíblia não conta o episódio por completo, mas existem aí algumas breves referências a este episódio. Os Actos dos Apóstolos (2:31) dizem que a alma de Cristo "não foi deixada no Inferno", uma Epístola aos Efésios (4:8-9) diz que "quando Cristo subiu às alturas, levou muitos prisioneiros (...) [e] isso significa que Cristo também desceu ao Inferno", e uma Epístola de Pedro (1 4:6) refere que "foi pregado o Evangelho também aos mortos". Portanto, é indisputável que havia, em tempos passados, esta tradição de algo que o Filho de Deus foi fazer ao submundo.
Hoje, já muito pouco se fala deste episódio, de uma descida de Cristo ao reino comummente associado ao Diabo, mas ela ainda pode ser vista representada em algumas igrejas antigas e em manuscritos, muitas vezes até com um pormenor especialmente curioso - a entrada para o Inferno é uma cabeça de um monstro gigantesco, talvez pela semelhança com o monstro - ou baleia, segundo alguns - que no Antigo Testamento engoliu Jonas (cf. Mateus 12:40). Fica portanto a questão - será que esta história ressoava nos primeiros cristãos de forma tão viva quanto outras passagens mais conhecidas do Novo Testamento? Talvez sim. E talvez valha a pena redescobri-la...