A verdadeira história da Carochinha e do João Ratão
A história da Carochinha e do João Ratão faz parte da cultura popular portuguesa e é um contos que todos conhecemos mais ou menos bem. Porém - e isto já poucos parecem saber - a verdade é que nos dias de hoje ela é sempre contada de uma forma incompleta. Já lá iremos, já contaremos a verdadeira e original, mas para quem já não se recordar bem da trama principal, podemos então relembrá-la aqui na versão de Ana de Castro Osório, de inícios do século XX:
A Carochinha achou cinco réis ao varrer a cozinha e, doida de alegria, foi a correr pôr-se à janela a gritar:
— Quem quer casar com a Carochinha, que é rica e formosinha?
Passa um cavalo e diz:
— Quero eu, quero eu!
— Como falas tu?
— Falo assim (e começou a relinchar).
— Ai, Deus me livre, que me acordas a vizinhança.
O cavalo foi-se embora, e ela continuou:
— Quem quer casar com a Carochinha, que é rica e formosinha?
Passou um burro:
— Quero eu, quero eu, quero eu!
— Como falas tu?
— Falo assim (e começou a zurrar).
— Deus me livre, acordarias a vizinhança!
O burro foi-se, de orelha murcha.
— Quem quer casar com a Carochinha, que é rica e formosinha?
— Quero eu, quero eu (disse o porco).
— Então como é a tua fala?
O porco grunhiu tão desafinadamente que a Carochinha pôs as mãos na cabeça, gritando:
— Deus me livre, acordarias toda a vizinhança!
E continuou, muito esperta, à sua janela:
— Quem quer casar com a Carochinha, que é rica e formosinha?
Passa um gato:
— Quero eu, quero eu!
— Então como falas tu?
— Falo assim: miau, miau, miau!
— Credo! Acordarias a vizinhança!
E continuava:
— Quem quer casar com a Carochinha, que é rica e formosinha?
— Quero eu, quero eu, quero eu (disse o carneiro, que passava).
— Como é a tua fala?
— É assim: mé, méé, mééé...
— Não te quero, acordarias a vizinhança.
E tornou a bradar, da janela abaixo:
— Quem quer casar com a Carochinha, que é rica e formosinha?
— Quero eu, quero eu, quero eu!... (disse um ratinho esperto, que passava pela rua).
— Então como é a tua voz?
— Chii! Chii! Chii!...
— Quero-te a ti, quero-te a ti, que não incomodas ninguém.
Casaram, fizeram uma grande boda e estavam muito satisfeitos. Um dia, de manhã, a Carochinha tinha que ir ao mercado, e disse ao seu João Ratão:— Fica tu em casa a tratar do almoço, que eu já venho.
O João-Ratão ficou; e, para se tornar prestável, foi deitar uma casca de cebola na panela, caindo de cabeça para baixo. Chiou, chiou, mas, como a querida Carochinha não estava em casa, lá morreu o João Ratão, cozido e assado no caldeirão. Ora a Carochinha demorou-se muito, a tratar das suas compras, a falar com os conhecimentos e a dar parte às amigas do seu novo estado. Quando, já tarde, chegou a casa, não viu o marido, e ficou em cuidado, procurando às vizinhas se o tinham visto. Como lhe não davam notícias dele, foi para casa, e resolveu almoçar. Mas quando foi levantar a tampa da panela e viu o marido, já morto, a boiar no cimo do caldo, ficou varada, e, no maior desespero, desgrenhou-se e arrepelou-se, chorando em altos gritos.
Normalmente a história da Carochinha e do João Ratão termina por aqui. Contudo, uma edição de contos populares datada de 1879 associa-a à região de Coimbra e continua a história de uma forma surpreendente (que também aparece, com algumas censuras, na versão de Ana de Castro Osório) - após este pseudo-final, uma tripeça, uma espécie de banco com três pés (como o da imagem acima), pergunta algo à heroína, levando a uma sequência que já quase ninguém conhece:
«Que tens, Carochinha,
Que estás aí a chorar?»
«Morreu o João Ratão
E por isso estou a chorar»
«E eu que sou tripeça
Ponho-me a dançar.»Diz dali uma porta:
«Que tens tu, tripeça,
Que estás a dançar?»
«Morreu o João Ratão,
A Carochinha está a chorar,
E eu que sou tripeça
Pus-me a dançar.»
«E eu que sou porta
Ponho-me a abrir e a fechar.»Diz dali uma trave:
«Que tens tu, porta,
Que estás a abrir e a fechar?
«Morreu o João Ratão,
A Carochinha está a chorar,
A tripeça está a dançar,
E eu que sou porta
Pus-me a abrir e a fechar.»
«E eu que sou trave
Quebro-me.»Diz dali um pinheiro:
«Que tens, trave,
Que te quebraste?»
«Morreu o João Ratão,
A Carochinha está a chorar,
A tripeça está a dançar,
A porta a abrir e a fechar,
E eu quebrei-me.»
«E eu que sou pinheiro
Arranco-me.»Vieram os passarinhos para descansar no pinheiro e viram-no arrancado e disseram:
«Que tens, pinheiro,
Que estás no chão?»
«Morreu o João Ratão,
A Carochinha está a chorar,
A tripeça está a dançar,
A porta a abrir e a fechar,
A trave quebrou-se,
E eu arranquei-me.»
«E nós que somos passarinhos
Vamos tirar os nossos olhinhos.»Os passarinhos tiraram os olhinhos, e depois foram à fonte beber água. E diz-lhes a fonte:
«Porque foi passarinhos,
Que tirastes os olhinhos?»
«Morreu o João Ratão,
A Carochinha está a chorar,
A tripeça está a dançar,
A porta a abrir e a fechar,
A trave quebrou-se,
O pinheiro arrancou-se,
E nós, passarinhos,
Tirámos os olhinhos.»
«E eu que sou fonte
Seco-me.»Vieram os meninos do rei com os seus cantarinhos para levarem água da fonte e acharam-na seca e disseram:
«Que tens, fonte,
Que secaste?»
«Morreu o João Ratão,
A Carochinha está a chorar,
A tripeça a dançar,
A porta a abrir e a fechar,
A trave quebrou-se,
O pinheiro arrancou-se,
Os passarinhos tiraram os olhinhos,
E eu sequei-me.»
«E nós quebramos os cantarinhos.»Foram os meninos para o palácio e a rainha perguntou-lhes:
«Que tendes, meninos,
Que quebrastes os cantarinhos?»
«Morreu o João Ratão,
A Carochinha está a chorar,
A tripeça a dançar,
A porta a abrir e a fechar,
A trave quebrou-se,
O pinheiro arrancou-se,
Os passarinhos tiraram os olhinhos,
A fonte secou-se,
E nós quebrámos os cantarinhos.»
«Pois eu que sou rainha
Andarei em fralda pela cozinha.»Diz dali o rei:
«E eu vou arrastar o cu
Pelas brasas.»
É fácil compreender a razão pela qual a história dos nossos dias termina com a morte do João Ratão. A ladainha que se seguia, muito secundária para toda esta trama desta história da Carochinha e do João Ratão, mas característica de muitas histórias de génese oral (que continham muitas vezes sequências como estas), não é de fácil memorização, apresenta alguns elementos claramente satíricos, outros impróprios para crianças, e até alguns bem críticos da nobreza da altura. Mas, ainda assim, esta história não deixa de ser uma que ainda hoje nos põe a todos um sorriso nos lábios!