Ísis em Braga? A Deusa Egípcia que Vive nas Pedras da Sé
Sabias que uma antiga inscrição romana na Sé de Braga revela a presença do culto à deusa Ísis? Descobre como esta divindade egípcia chegou à Bracara Augusta e como deixou marcas na espiritualidade local.
Braga é conhecida como uma das cidades mais antigas de Portugal e, ao mesmo tempo, como capital espiritual do país. Mas por entre os sinos e as tradições cristãs, há vestígios de um passado surpreendente: uma inscrição romana dedicada à deusa Ísis, encontrada na própria Sé Catedral. A Sé de Braga foi construída no século XI, mas acredita-se que o local onde se situa era ocupado por um mercado ou por um templo romano dedicado à deusa. A pedra votiva foi assim reutilizada na construção da catedral, fenómeno frequente na época.
A epígrafe está localizada numa parede exterior voltada para a Rua de Nossa Senhora do Leite. Traduzida, revela:
“A Chancelaria Augusta de Braga dedicou este templo à deusa Ísis, sendo sacerdotisa Lucrécia Fida, pelo povo Romano e pelos Augustos.” *
Infelizmente, a pedra onde continuava a inscrição está desaparecida, mas o que resta já basta para atestar a presença e importância deste culto na época romana.
Ísis era originalmente uma deusa egípcia, associada à maternidade, magia e proteção. Era frequentemente representada com o seu filho Hórus ao colo, amamentando-o - uma imagem profundamente maternal e divina. Hórus, por sua vez, era o filho sagrado, herdeiro de Osíris, destinado a restaurar a ordem após o caos. O seu culto expandiu-se além do Nilo com a helenização do mundo antigo, sendo integrada no panteão greco-romano como uma divindade universal, associada à sabedoria, pureza e às forças da natureza. Plutarco relata que lhe era dedicado o pessegueiro [ou a árvore "persea"] — cujas folhas se assemelham a uma língua e os frutos a um coração — como metáfora da castidade em palavras e ações que os seus fiéis deveriam adotar. O culto isíaco ganhou grande popularidade e espalhou-se por todo o Mediterrâneo. Através da presença militar, comercial e administrativa romana, Ísis chegou à Península Ibérica — incluindo a Bracara Augusta, atual Braga.
Quando o cristianismo começou a consolidar-se, muitos dos fiéis ainda carregavam símbolos e emoções associadas a divindades pagãs. A figura da Virgem Maria — mãe de Jesus, pura, compassiva, intercessora — preencheu naturalmente o espaço simbólico que Ísis ocupava. A iconografia da Virgem com o Menino no colo, nomeadamente Nossa Senhora do Leite, venerada em Braga e noutros centros de tradição católica, reproduz diretamente a pose tradicional de Ísis com Hórus. Jesus, como Hórus, também é visto como o filho divino, enviado para redimir e salvar, dotado de uma missão messiânica.
Embora o cristianismo tenha reformulado profundamente o conteúdo teológico desses arquétipos, a forma simbólica manteve-se familiar para os povos do Mediterrâneo - ambas são figuras maternais, retratadas a amamentar o filho divino. Essa continuidade facilitou a transição entre crenças e ajudou a construir uma nova espiritualidade enraizada em símbolos já reconhecíveis — agora com novos significados cristãos.
A inscrição dedicada a Ísis é mais do que uma curiosidade arqueológica. É uma lembrança viva de que Braga sempre foi uma cidade de encontros — entre impérios, entre culturas, entre divindades. E que, nas suas pedras mais antigas, ainda ressoam vozes do passado, prontas a serem redescobertas.
[Nota: Este artigo foi da autoria exclusiva de Domingos Fernando Barbosa, pertencendo-lhe todos os direitos legais.]
*- Nota do editor, para quem tiver interesse em sabê-lo, a inscrição original não é fácil de ler mas parece dizer o seguinte:
"ISIDI AV[G] SACRUM
LUCRETIA FIDA SACERD PERP
ROM ET AUG
CONVENTUUS [...]"