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Mitologia em Português

13 de Setembro, 2021

João Soares de Paiva, primeiro autor português?

Quando se fala de um potencial primeiro autor português, o nome que tende a surgir frequentemente é o de João Soares de Paiva, que terá vivido em meados do século XII. Porém, Teófilo Braga também incluiu este mesmo nome entre o das maiores lendas de Portugal, dando a entender que ele não terá sido apenas um simples autor, mas também terá associado pelo menos algo semelhante a uma espécie de lenda. Assim, o que se esconde por detrás deste nome?

Um trovador como João Soares de Paiva, o primeiro autor português

Para que possamos considerar João Soares de Paiva como um primeiro autor português é necessário, obviamente, que ele tenha composto algo nesta língua. E, de facto, chegou-nos mesmo uma cantiga de maldizer que lhe é atribuída:

Ora faz host'o senhor de Navarra,
pois en Proenç'ést'el-Rei d'Aragón;
non lh'han medo de pico nen de marra
Tarraçona, pero vezinhos son;
nen han medo de lhis poer boçón
e riir-s'han muit'Endurra e Darra;
mais, se Deus traj'o senhor de Monçón,
ben mi cuid'eu que a cunca lhis varra.

Se lh'o bon Rei varré-la escudela
que de Pamplona oístes nomear,
mal ficará aquest'outr'en Todela,
que al non ha a que olhos alçar:
ca verrá i o bon Rei sejornar
e destruír ata burgo d'Estela:
e veredes Navarros lazerar
e o senhor que os todos caudela.

Quand'el-Rei sal de Todela, estrẽa
ele sa host'e todo seu poder;
ben sofren i de trabalh'e de pẽa,
ca van a furt'e tornan-s'en correr;
guarda-s'el-Rei, come de bon saber,
que o non filhe luz en terra alhẽa,
e onde sal, i s'ar torn'a jazer
ao jantar ou senón aa cẽa.

Ela não é muito fácil de ler, até por estar em Galaico-Português, mas uma espécie de prefácio, presente em algumas edições, dá uma informação muito importante e bastante simples de compreender, que permite descortinar aquilo que aqui procuramos hoje:

Esta cantiga é de maldizer e feze-a Joam Soárez de Pávia a 'l-rei Dom Sancho de Navarra porque lhi troub'host'em sa terra e nom lhi deu el-rei ende dereito.

Toda esta informação permite-nos saber que numa dada altura Dom Sancho [VII] de Navarra invadiu terras alheias, incluindo algumas de um rei de Aragão, possivelmente em finais do século XII, e que isso afectou de alguma forma este poeta, motivando-o a escrever o poema acima, em que o afectado critica o rei pelas suas acções cobardes. Portanto, a termos de associar uma espécie de lenda a este João Soares de Paiva, ela passaria precisamente por estes precisos eventos, i.e. provavelmente algumas terras que lhe pertenciam foram invadidas e o poeta escreveu um poema em que criticava o invasor. Ao mesmo tempo, a realidade histórica destes eventos permitem datar a sua composição, tornando possível constituir o seu autor como um pseudo-"primeiro autor português", não porque o que tenha sido com todas as certezas do mundo, mas porque parece ser o mais antigo que nos seja possível datar.

 

Os mais chatinhos poderão querer argumentar que o que está ali em cima é um poema de João Soares de Paiva em Galaico-Português, até de difícil leitura nos nossos dias, não uma composição na língua portuguesa tal como a conhecemos hoje. Contudo, as línguas são entidades mutáveis, que evoluem ao longo dos séculos, e pela mesmo ordem de ideias seria, de alguma forma, até possível dizer-se que um autor como Luís de Camões não escreveu em Português, já que nas edições originais dos Lusíadas, bem como dos seus outros poemas, nem sempre é fácil compreender o que ele nos escreveu. Gil Vicente ainda é pior, a esse nível, mas ninguém duvida que eles tenham escrito na nossa língua! Portanto, o que o poema ali exposto apresenta é como que uma forma embrionária da nossa língua, que já não é Latim mas que ainda não é igual à nossa.

 

Assim, faz todo o sentido afirmar-se que João Soares de Paiva foi o primeiro autor português cuja data ainda conseguimos atestar. Não foi certamente o primeiro a escrever na língua que vimos acima, mas é o primeiro que o fez de uma forma que conseguimos datar. Em outras cantigas medievais - relembre-se, a título de exemplo, a do nosso Sancho I a Maria Pais Ribeira - nem sempre é possível datar os eventos em questão, pelo que até poderão existir autores anteriores ao aqui em questão, mas já não temos qualquer forma real de o vir a saber...

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