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Mitologia em Português

11 de Outubro, 2021

Lenda das barbas de Dom João de Castro

Falar sobre as barbas de Dom João de Castro implica retroceder alguns séculos no tempo, para um contexto cultural que em dados aspectos nos poderá parecer significativamente estranho, mas que nem é assim tão diferente dos nossos dias de hoje. Recorde-se, portanto, de uma forma sucinta a respectiva lenda.

A lenda das Barbas de Dom João de Castro

Dom João de Castro viveu na primeira metade do século XVI. Foram várias as suas aventuras dentro e fora do campo de batalha, até que numa dada altura se encontrou em Goa, na Índia, a tentar defender a cidade contra invasores. Fê-lo com sucesso, mas quando quis reconstruir a fortaleza de Diu, também ela em terras da Índia, apercebeu-se de que não tinha dinheiro para tal. Assim sendo, a 23 de Novembro de 1546 decidiu escrever uma carta para as pessoas mais importantes da cidade de Goa, pedindo-lhes um empréstimo para conseguir reconstruir esta fortaleza, que então estava quase completamente destruída. A carta em questão merece ser citada aqui de uma forma alongada, até para que se possa compreender o seu verdadeiro sentido. A edição é de Elaine Sanceau:

(...) Já agora me pareceo necessário não dissimular mais tempo, e dar-vos conta dos trabalhos em que fico, e pedir-vos ajuda para poder supprir, e remediar tamanhas cousas, como tenho entre as mãos; porque eu tenho a Fortaleza de Dio derribada até o cimento, sem se poder aproveitar hum só palmo de parede.
(...)
Pelo que vos peço muito por mercê, que por quanto isto importa ao serviço del Rei Nosso Senhor, e por quanto cumpre a vossas honras, e lealdades, levardes avante vosso antigo costume, e grande virtude, que he acodirdes sempre ás estremas necessidades de Sua Alteza, como bons, e leaes vassallos seus, e pelo grande, e entranhavel amor, que a todos vos tenho, me queiraes emprestar vinte mil pardaos, os quaes vos prometto como Cavalleiro, e vos faço juramento dos Santos Evangelhos de vo-los mandar pagar antes de hum anno, posto que tenha, e me venhão de novo outras oppressões, e necessidades maiores, que das que ao presente estou cercado.
Eu mandei desenterrar D. Fernando meu filho, que os Mouros matarão nesta Fortaleza, peleijando por serviço de Deos, e dei Rei Nosso Senhor, para vos mandar empenhar os seus ossos, mas acharão-no de tal maneira, que não foi lícito ainda agora de o tirar da terra; pelo que me não ficou outro penhor, salvo as minhas próprias barbas, que vos aqui mando por Diogo Rodrigues de Azevedo; porque como já deveis ter sabido, eu não possuo ouro, nem prata, nem movel, nem cousa alguma de raiz, por onde vos possa segurar vossas fazendas, somente huma verdade secca, e breve, que me Nosso Senhor deo. Mas para que tenhais por mais certo vossos pagamentos, e não pareça a algumas pessoas, que por alguma maneira podem ficar sem elle como outras vezes aconteceo, vos mando aqui huma Provisão para o Thesoureiro de Goa, para que dos rendimentos dos Cavallos vos va pagando entregando toda a quantia que forem rendendo, até serdes pagos. E o modo que neste pagamento se deve ter o ordenareis lá com elle. (...)

 

Infelizmente, esta carta tende quase sempre a ser citada de uma forma muito abreviada, dando a entender algo que não é uma completa verdade. Para pagar a reconstrução da fortaleza, é certamente verdade que Dom João de Castro "penhorou" as suas agora-famosas barbas, como pode ser lido acima, mas fê-lo num sentido simbólico e oferecendo também, ao mesmo tempo, um pagamento parcial. Se for apresentada como aqui, a carta também nos permite compreender algo mais importante, o facto de tudo isto se tratar de uma questão de honra, i.e. ele estava disposto a arriscar a sua família, a sua vida e até a sua honra em defesa do património que via como Português. Assim, as suas barbas tornaram-se um símbolo disso mesmo, de alguém que está disposto a fazer tudo o necessário em prol do país - e como tal tornaram-se uma relíquia quase religiosa, já que ao longo das décadas foram passando de mão em mão, até terem desaparecido da história nacional para parte incerta.

 

Resta uma questão - será que, como alguns parecem pensar, a expressão "pôr as barbas de molho" veio mesmo dos actos deste Dom João de Castro? Apesar de se pensar frequentemente que sim, há que notar que a oferta simbólica das barbas pressupõe uma cultura em que isso faça sentido*. Como tal, é possível que toda a ideia o preceda - pôr as barbas de molho não é senão preparar-se para as cortar, i.e. ainda hoje é hábito humedecer a face antes de se fazer a barba... - mas que se tenha cristalizado na cultura popular em associação a ele. Se assim não o fosse, como explicar esta estranha oferta? Se, por exemplo, um amigo nos pedisse dinheiro emprestado, e em troca nos oferecesse as suas unhas dos pés, não nos pareceria isso extremamente estranho?! É óbvio que sim, excepto se vivêssemos numa cultura em que unhas dos pés significam coisas como saber, justiça ou fidelidade. Portanto, é bem mais correcto admitir que a expressão será anterior a esta figura histórica, mas que poderão ter sido as suas acções a popularizá-la ainda mais.

 

 

*- Veja-se, ainda nos nossos dias de hoje, culturas como a judaica e a islâmica, em que os homens raramente cortam as suas barbas, por razões religiosas.

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