A lenda de São Frei Gil (e o épico "Egidéa")
Se Frei Gil foi uma de aquelas figuras nacionais que em outros tempos eram muito famosas, hoje também está quase esquecido. E é pena, porque a grande aventura por que passou, segundo nos dizem as lendas, fazem dele uma espécie de Fausto nacional, numa história que parece ter fascinado tantos públicos ao longo dos séculos que há menos de 300 anos até lhe foi dedicado um poema épico, a Egidéa, que em versos de autoria anónima recontam a respectiva história. Agora, é provável que ele ainda seja um pouco conhecido em terras de Santarém, onde viria a falecer, mas para todos aqueles leitores que nunca ouviram falar dele - é Frei Gil, sim, mas também "São ...", "... de Valadares" (o apelido de seu pai), "... de Portugal", "... de Vouzela" (onde nasceu), etc. - iremos aqui recontar a sua lenda de uma forma sucinta.
Nascido Gil Rodrigues de Valadares em 1190, após alguns anos decidiu ir estudar Medicina na Universidade em Paris. Este elemento é factual, mas tudo o resto poderá tratar-se de uma estranha mistela de lenda e realidade, onde nem sempre é possível reconhecer onde termina um e começa o outro, sendo essa uma informação crucial a ter em conta nas linhas que se seguem.
Conta-se que este Gil, enquanto viajava para Paris, passou pela cidade espanhola de Toledo, em que um misterioso homem o convenceu que existia um curso para ele melhor que aquele que tinha escolhido - o da Necromancia ou Magia Negra. Primeiro intrigado, mas depois já convencido, o herói assinou um contracto em sangue e dedicou-se sete anos ao estudo das artes mágicas, antes de se dedicar a todo o tipo de maldades e concluir muito facilmente o curso que tinha planeado tirar em Paris, até dados os seus conhecimentos etéreos. Mas depois, um dia, quando estava fechado a estudar, surgiu-lhe em casa um cavaleiro misterioso, que lhe disse "Ó homem, muda a vida, muda a vida!"; ignorando-o, continuou os seus estudos, até que o misterioso cavaleiro lhe apareceu uma segunda vez e lhe disse "Ó homem, muda, muda a tua vida, senão com esta lança a tens perdida!"... e, meio por temor de um ferimento que pareceu sofrer, meio por arrependimento, Gil decidiu que tinha mesmo de mudar a sua vida.
Andou de terra em terra até dar por si em Palência (Espanha), em que se juntou a uma ordem religiosa, a dos Pregadores. Posteriormente viria para Portugal, vivendo numa casa de outra ordem (a dominicana?), em Santarém. Mas, por muitas penitências que realizasse, nunca deixou de se lembrar que os demónios ainda tinham o contracto da sua alma... até que um dia, enquanto rezava e contemplava uma estátua da Virgem Maria, lhe pediu a sua intercessão e - diz a lenda, repita-se bem isso - com a ajuda dessa famosa advogada acabou por ser capaz de se livrar, de uma vez por todas, da influência demoníaca que tantos anos o aterrorizou. Viria a morrer alguns anos mais tarde, a 14 de Maio de 1265, mas deixou-nos uma cinta de ferro que usava para sentir na carne o peso dos pecados que anteriormente tinha cometido (se ela ainda existe hoje, não conseguimos encontrar uma fotografia).
Esta é a lenda de Frei Gil, tal como tende a ser recontada e como foi adaptada para o poema épico Egidéa. É difícil saber onde estão os elementos lendários e a pura verdade em tudo isto - por exemplo, poderá ter sido o seu jeito para a Medicina que inspirou a ideia do pacto demoníaco - mas todas as versões que consultámos são peremptórias tanto em afirmar a existência de um pacto com o Diabo, como em proclamar que, depois, o herói veio a renegar a essa influência diabólica. É esse elemento, tão incomum em hagiografias nacionais (e até estrangeiras!), que o tornou especialmente famoso e o manteve nessa estranha posição ao longo dos séculos, ao ponto de o podermos resumir como o santo português que fez um facto com o demónio.
Mas, deixando agora de lado a lenda para nos focarmos no poema épico Egidéa, será que ainda vale a pena lê-lo? Apesar da presença de uma meia dúzia de estrofes com alusões mitológicas, a construção poética, em si mesma, não nos pareceu particularmente agradável. Se, por um lado, reconta toda a lenda de Frei Gil de uma forma relativamente simples, por outro, a forma como o faz tem pouco de belo, quase como se apenas se tivesse tentado fazer rimar uma história em prosa. E, na verdade, não encontrámos nos seus nove cantos uma única estrofe que sentíssemos que fosse particularmente bela, só merecendo a abaixo - retirada de um instante em que os demónios torturam o herói - uma referência pela alusão mitológica:
Tisífone aumentava a enfermidade
Que já desde Paris o perseguia.
Alecto mais perversa na verdade
Muito mais dura guerra lhe faria.
Dizendo que a Divina Piedade
Inexorável sempre lhe seria.
Mas a terceira irmão não dava a morte
Por ver se o concluía de outra sorte.
Por isso, a Egidéa merece ser recordada nestas linhas por se tratar de um dos poucos poemas épicos sobre as desventuras de um futuro santo, e por ter como seu tema uma lenda que, feliz ou infelizmente, parece estar mais e mais esquecida. Não é uma obra fácil de encontrar, mas talvez nem valha a pena o trabalho de tentar reencontrá-la, excepto para alguém que tenha um enorme interesse no tema. Para os outros, prefiram antes a mais-risonha Gaticanea!
E uma última curiosidade - se este São Frei Gil foi contemporâneo do Santíssimo Milagre e até parece ter vivido na mesma cidade de Santarém nessa altura, nenhuma versão da lenda parece fazer cruzar as duas ocorrências, o que pode fazer levantar algumas questões muito curiosas...