"Livro de Baruch", de Justino
A identidade deste Livro de Baruch (também conhecido por Baruque ou Baruc) é difícil de explicar, já que existem múltiplos textos com este mesmo nome, e também pouco se sabe sobre o seu autor real. Assim, o texto a que me refiro aqui aparece mencionado na obra de Hipólito, Refutação de Todas as Heresias, livro 5.19 a 5.22 (uma versão em inglês pode ser consultada neste link). Mas porquê, esta referência a um obra de ideias gnósticas neste espaço?
A explicação é relativamente inesperada... em 5.20, Hipólito reconta-nos um mito de Hércules que parece provir de Heródoto. Parafraseio:
Enquanto descansava no deserto da Cítia, Hércules adormeceu e o cavalo em que se deslocava afastou-se. Depois, e em busca do animal, o herói encontrou um ser meio-mulher, meio-cobra, que lhe revelaria a localização do cavalo em troca de relações sexuais. Dessa união nasceram três filhos.
Até aqui este poderia ser só mais um mito, mas Hipólito continua o texto com uma referência a algo bem mais infrequente: "Justino transforma esta lenda na sua versão da criação do mundo". Mas como? Na secção seguinte, 5.21, o autor reconta toda a história da criação segundo o Livro de Baruch (que vai para além do objectivo deste blog, importa lembrar) e eventualmente refere Hércules como sendo um dos profetas enviados por Elohim. Os seus doze trabalhos são aqui vistos como confrontos contra os doze anjos de Edem, mas este acaba por ser um herói apenas parcialmente victorioso - preso nos encantos de Onfale, acaba por se esquecer da sua verdadeira tarefa, a qual é deixada para um profeta seguinte, Jesus.
Note-se, nesse sentido, a passagem de testemunho de Moisés para Hércules, de Hércules para Jesus, que servia uma figura mais tarde identificada como Príapo ("aquele que criou antes de alguma coisa ser", diz o texto). Seria este o Príapo da mitologia grega? É provável, já que era um deus da fertilidade, mas esta é também uma relação com dois sentidos que se mantém para os vários elementos seguintes, em que o autor mostra várias fusões entre as antigas figuras (nomeadamente Leda, Ganimedes e Danae) e as da nova religião (Elohim, Edem, Naas e Adão).
Portanto, este é um texto que, apesar de nos ser somente acessível numa paráfrase de Hipólito de Roma, ainda nos permite constatar uma curiosa evolução religiosa, passando de cultos mais antigos para uma ideia que, eventualmente, se irá tornar parte do Gnosticismo.