Natalis Comes e "Mythologiae"
Natalis Comes não é um autor muito conhecido nos nossos dias, nem a sua Mythologiae continua a ter o interesse original. Apesar de pouco se saber sobre ele, salvo alguns dados biográficos mais óbvios que podem ser inferidos através da própria obra, em outros tempos este foi um autor quase sinónimo do próprio estudo mitológico, mas com o tempo a forma como tratava o seu tema parece ter perdido o seu ímpeto. Certamente discutível, se isso até foi bom ou mau, mas apresente-se esta obra para depois nos podermos focar nesse outro ponto.
A Mythologiae, de Natalis Comes, é, como não poderia deixar de ser, uma obra de espírito mitológico. Apesar de ter sido escrita e publicada em meados do século XVI, a intenção do autor parece ter sido a de recordar os mitos da Antiguidade e dar-lhes uma cara mais apropriada para o seu tempo. Assim, ele pegou nas várias fontes primárias a que ainda tinha acesso, algumas delas estranhamente obscuras*, e usou-as para reconstruir os mais famosos mitos clássicos com base no que estas lhe diziam. Quase sempre, isso gerou um relato mitológico como aqueles que ainda temos hoje, mas em outros permitiu a este autor polvilhar as suas histórias com elementos que poucos leitores conheceriam, e.g. uma possível origem lunar do Leão da Nemeia.
Pela positiva, Natalis Comes conseguiu assim criar uma obra em que reconta os mitos originais mas ainda lhes associa, ocasionalmente, factos menos conhecidos. Nem sempre é claro de onde eles vêm*, mas o autor desta Mythologiae consegue, aqui e ali, surpreender os leitores com os factos que apresenta.
Mas, pela negativa - se é correcto chamar-lhe isso... - ele reconta todas essas histórias na sua obra com o objectivo de as interpretar, de representar uma espécie de lições que ele dizia que os Antigos tinham escondido nas suas tramas, na provável senda de autores como Fulgêncio. Algumas dessas interpretações - a maior parte delas estão no décimo dos 10 livros que compõem esta obra - fazem sentido, outras nem tanto, mas é muito provável que tenha sido esse o elemento que foi desagradando aos leitores que vieram mais tarde - era uma estratégia relativamente comum no seu tempo, mas que, indisputavelmente, foi depois perdendo a sua importância original.
Porém, isso não equivale a dizer que esta Mythologiae de Natalis Comes está completamente ultrapassada. Claro que tem um conjunto de elementos que os leitores dos nossos dias talvez já não apreciem tanto, e eles até são comuns na obra, mas mesmo assim o seu autor ainda recapitula um conjunto muito significativo dos maiores mitos da Antiguidade, "organizados" de uma forma um tanto ou quanto desorganizada, em que raramente se sabe que tema se segue ao actual... e, além disso, dá frequentemente as fontes para sua informação, o que permite ao leitor conhecer, sem muita dificuldade, quais são os autores mais relevantes para o estudo de um determinado mito, alguns deles menos conhecidos, como João Tzetzes.
Por isso, esta é uma obra mitológica que foi muito significativa no seu tempo, mas que hoje, em que informações como as que contém estão rapidamente ao alcance dos nossos dedos, já não é tão importante como na sua data de publicação original. Como tal, Natalis Comes e a Mythologiae ainda são dignos de leitura, mas é provável que seja muito poucos aqueles que ainda se interessam pelo conteúdo que ele tem para nos oferecer.
*- Será que o autor ainda tinha acesso a algumas fontes literárias hoje perdidas, ou será que pura e simplesmente inventou algumas das suas fontes, como o tinha feito algumas décadas antes Ânio de Viterbo? Isso não é completamente claro, mas dado que essas fontes nunca são utilizadas para provar algo de muito grande, mas se resumem a breves referências muito ocasionais, é provável que ele as tivesse acedido, por exemplo, através de escólios de uma obra hoje inacessível...