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Mitologia em Português

02 de Maio, 2022

O "Agiológio Lusitano" (e três santas cabeças)

Há algumas semanas obtivemos uma cópia dos quatro tomos de uma obra intrigante, o chamado Agiológio Lusitano. A obra, apesar de extensa - o primeiro volume data de 1652; o terceiro, ainda da autoria de Jorge Cardoso, data de 1666; enquanto que o quarto, de 1744, é já da autoria de António Caetano de Sousa - cobre, de uma forma sucinta, as histórias dos muitos santos e relíquias que eram venerados em Portugal nesse tempo, começando com o primeiro dia de Janeiro e terminando com o último de Agosto. A forma como está esquematizada dá a inferir que até estivessem planeados mais dois volumes, Setembro/Outubro e Novembro/Dezembro, mas eles nunca foram compilados ou publicados, deixando, infelizmente, a obra incompleta de uma forma parcial. Ainda assim, dada a sua importância, falemos sobre ela.

Capa do primeiro tomo do Agiológio Lusitano

Na forma como está esquematizado, este Agiológio Lusitano é uma obra simples, que pretendia dizer, para cada dia do ano, quais os santos nacionais que nele eram venerados, aos quais são adicionadas descobertas e transladações de relíquias (e.g. o caso de São Vicente), entre outros temas semelhantes, que pela sua proximidade ao culto cristão poderiam ser associadas a determinadas datas. Em (quase) cada caso, tenta-se contar uma breve história relacionada com essas figuras ou relíquias. Normalmente são pequenas, de apenas alguns parágrafos, mas existe pelo menos um caso, relacionado com o Milagre de Ourique, em que o tema se prolonga por mais de meia dúzia de páginas, adicionando até à história elementos que não aparecem em outras fontes. Depois, como complemento, os autores até dão os seus comentários pessoais em relação a cada história, o que adiciona também algum interesse extra ao tema por eles coberto. E nesse seu tema geral, a obra só peca por, sem dúvida graças à enorme dificuldade de investigar todas as figuras que inclui, não cobrir todos os dias do ano - como já mencionado acima, até foram necessários dois investigadores distintos e quase um século para se chegar ao mês de Agosto!

 

Agora, o que mais podemos dizer sobre este Agiológio Lusitano? Enquanto o íamos lendo fomos tomando algumas anotações pessoais, mas o grande problema com que nos deparámos foi o de ligar a obra com os mitos e lendas de Portugal. Não queríamos apenas apresentar aqui meia dúzia de lendas de santos ao calhas, sem qualquer ligação real entre elas, mas sim incluir um qualquer tema que viesse destes livros mas também estivesse ligado mais às lendas nacionais. Portanto, decidimos referir aqui três histórias de cabeças santas que ainda eram veneradas em Portugal nos séculos XVII e XVIII, numa curiosa mistura que ainda unia o Cristianismo a um conjunto de crenças que ainda hoje podem ser vistas, por exemplo, na famosa Oração de Santa Bárbara.

 

Num primeiro relato é referido um tal "Santo Pastor de Izeda", de Macedo do Mato, Bragança. O compilador não nos conta o verdadeiro nome deste santo ou os seus feitos, mas diz que a respectiva cabeça, ornamentada com prata, tinha uma capacidade milagrosa - quando era tocada pelo pão, este tornava-se incorrupto e passava a curar muitas doenças, em particular dores de cabeça e mordeduras de cães doentes. Quem desejar fazer um teste, ela estava na "Ermida de São Brás" desta povoação, de que parece já não haver memória.

Outra mencionada neste Agiológio Lusitano é a "Santa Cabeça do Bombarral", local próximo de Óbidos. Também aqui se desconhece o nome do santo, mas é dito que ele era um lavrador muito bondoso que deixou a indicação de que após a morte a sua cabeça deveria ser preservada. Mais tarde, quando os gados estavam doentes, beijavam ou lambiam esta cabeça e ficavam curados por milagre. O local onde supostamente podia ser vista ainda parece existir, uma pequena capela agora no cemitério do Bombarral, mas à presente data não descobrimos se a relíquia ainda é aí venerada como tal.

Agora, para dar um exemplo também do sul do país, em Aljezur existiam duas santas cabeças, as de João Galego e Pero Galego - pai e filho - que eram agricultores que fizeram muito bem nas suas vidas, e cujas cabeças foram então preservadas após a morte, altura em que começaram a fazer milagres, curando dores de cabeça, mordeduras de cães, etc. Estas ainda estão na Igreja Matriz de Aljezur, para quem as quiser tentar visitar.

 

Curiosas são as palavras deste Agiológio Lusitano no final da história desta terceira cabeça - "estas cabeças santas são em todos os tempos os protomédicos e asilos sagrados deste reino" - ligando-as à medicina popular de outros tempos. A sua ligação relativamente comum a São Brás, para quem tiver essa curiosidade, parece advir do facto desse santo ter sido martirizado pelos Romanos, que lhe cortaram a cabeça, um elemento comum em muitas histórias medievais (e.g. o caso de São Torpes).

 

Em suma, este Agiológio Lusitano, apesar de estar incompleto e hoje um pouco desactualizado, é uma obra notável para quem quiser saber um mínimo sobre determinadas figuras religiosas cristãs que foram sendo veneradas no nosso país. Nem sempre as suas histórias são claras, como se pôde notar acima, e a obra também inclui muitas figuras da religião popular portuguesa, algumas das quais se assemelham a puras lendas. Não encontrámos aqui nenhum exemplo nacional extremo como o do francês de São Guinefort, mas estão presentes algumas histórias que não podem deixar de nos fazer esticar a nossa imaginação...

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