O caso esquecido de Robert Gardner
Esta estranha história de um tal Robert Gardner, de origem inglesa e que passou por Portugal no ano de 1552, foi uma a que encontrámos uma pequena alusão na obra Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa e que nos pareceu tão digna de nota que achámos que lhe deveríamos dedicar algumas linhas, até por se tratar de um evento que, apesar de ser pura realidade, hoje nos poderá parecer uma mera lenda e nada mais.
Em Dezembro de 1552 o rei Dom João III estava a assistir a uma missa na Capela Real de Lisboa, juntamente com a sua corte, quando algo de muito invulgar aconteceu. No instante em que o padre ergueu a hóstia para a consagrar (e relembre-se que nesses outros tempos ele o fazia de costas para os crentes), Robert Gardner agarrou-a, atirou-a ao chão, pisou repetidamente o metafórico "corpo de Cristo" e derrubou também o cálice com o que viria a ser o "sangue de Cristo". Horrorizados, os crentes quiserem matá-lo logo ali, naquele local e no preciso momento das ocorrências, mas o rei insistiu que ele ainda deveria ser julgado para poder ser punido legalmente.
E isso veio a acontecer de forma bastante célere, e muito naturalmente que Robert Gardner foi depois condenado à morte, mas um aspecto importante do caso é o facto de este estrangeiro ter insistido, repetidamente, que não fez qualquer mal a Deus - isto, porque se até era cristão, a sua forma de crença - possivelmente a anglicana - não acreditava na transmutação mística que ainda hoje parecemos associar ao pináculo da nossa missa.
Mas toda esta história de Robert Gardner ainda não fica por aqui - diz-se ainda que Dom João III ficou tão perturbado com toda esta ocorrência que não mais se esqueceu dela até ao fim da sua vida. Anos mais tarde, Francisco de Holanda, na obra já nomeada acima, deu depois a ideia de se construir uma renovada capela no local, como que para pedir desculpa a Deus face ao que aí se tinha passado... mas tudo isto está hoje quase esquecido, por muita importância que até possa ter tido nesses outros tempos, mas não pode deixar de nos levar a perguntar o que aconteceria se alguém repetisse a façanha nos nossos dias de hoje*...
*- Relembre-se que esse tipo de violações da hóstia eram relativamente comuns em outros tempos, como a famosa história do Santíssimo Milagre de Santarém também atesta, mas ao longo do tempo foram-se tornando cada vez menos comuns, talvez pela perda progressiva da crença nos poderes místicos de uma hóstia consagrada.