O "Clássico das Montanhas e dos Mares" e os animais estranhos
Já aqui falámos antes, de forma muito breve, sobre o Clássico das Montanhas e dos Mares (山海经), uma obra chinesa da Antiguidade que, resumidamente, pode ser vista como um bestiário. Ela descreve, de forma muito breve, as criaturas, deuses e seres humanóides que se cria que existiam não só em terras da China mas também nos além-mares, juntamente com algumas informações sobre os poderes especiais de algumas delas. Foi sobre esse último elemento que cá dedicámos algum tempo antes, quando discutimos se os Chineses comem carne humana, mas hoje decidimos falar um pouco mais sobre os estranhos animais que vão surgindo nessa obra. Alguns deles são bem reais, pelo que têm pouco interesse mitológico, mas depois de uma releitura da obra original apresentamos aqui um pequeno resumo das criaturas mais notáveis da obra, escolhidas em virtude da estranheza das características que aí lhes são atribuídas:
Bashe - cobra que devora elefantes, cuspindo os ossos após três anos (ver imagem acima).
Bo - cavalo branco com cauda preta, um corno, dentes e garras de tigre. Come tigres e leopardos.
Changfu - galinha com três cabeças, seis olhos, seis pés e três asas, comê-la remove o sono.
Chiru - peixe com cara humana, comê-lo protege contra as doenças.
Danghu - faisão que voa com as penas do pescoço, comê-lo cura as doenças da visão.
Fei - boi com cabeça branca, um olho e cauda de serpente. As águas evaporam e a vegetação morre por onde ele passa.
Feiyi - cobra com seis pés e quatro asas.
Huan - cabra sem boca que é indestrutível.
Juru - pato com cabeça branca, três patas, e cara humana.
Lei - gato que tem ambos os sexos, comê-lo cura as invejas.
Lei - pega vermelha e preta com duas cabeças e quatro pés.
Lushu - cavalo com listas de tigre e rabo vermelho, o seu pêlo ajuda a ter muitos descendentes.
Manman - pato com uma asa e um olho, que só consegue voar se encontrar um companheiro.
Manman - rato com cabeça de tartaruga, e que ladra.
Min - pássaro com bico vermelho, protege do fogo.
Paoxiao - cabra com cara humana, olhos por trás dos sovacos, dentes de tigre e mãos humanas. Come seres humanos.
Qinyuan - abelha do tamanho de um pato, que mata animais e árvores com o seu ferrão.
Qiongqi - tigre com asas, que come as pessoas começando pela cabeça (ou pelos pés), com preferência por aquelas que usam cabelos longos.
Renyu - peixe com quatro pernas. Comê-los cura a estupidez.
Rupi Zhi Yu - frigideira com cabeça de pássaro, barbatanas e cauda de peixe. Faz nascer pérolas e jade.
Shenchui - seres com cara humana, um pé e uma mão.
Shuhu - cavalo com asas de pássaro, cara humana e cauda de serpente.
Shuyu - galinha com penas vermelhas, três caudas, seis pés e quatro cabeças. Comê-la cura a tristeza.
Tulou - cabra com quatro cornos, come seres humanos.
Tuofei - mocho com cara humana e uma só perna.
Xingxing - porco com cara humana, que consegue identificar as pessoas só pelo seu nome.
Xingxing - macaco falante, comê-lo faz a pessoa mais rápida em corrida.
Yao - pato com corpo verde, olhos rosa e cauda vermelha. Comê-lo ajuda a ter filhos do sexo masculino.
Yiniao - cinco pássaros tão grandes que conseguem com a sua sombra cobrir vilas inteiras.
Yu - mocho com cara humana, quatro olhos e orelhas.
Zheng - leopardo vermelho com cinco caudas e um corno, que faz o barulho de pedras a chocarem umas com as outras.
Zhu - mocho que tem mãos humanas em vez de pés.
O Clássico das Montanhas e dos Mares contém muitas mais criaturas além destas, num total de mais de duas centenas, (quase?) todas elas ilustradas com belos desenhos da época. Até pode ser esse o elemento mais notável de toda a obra, essa intenção dos seus autores de não só descrever estes animais e figuras mas também de mostrar como se pensava que eles eram. Curiosamente, algumas vezes a descrição e a imagem não batem certo, parecem referir-se a duas criaturas muito distintas, mas parecem ser raras essas falhas, que só quem estiver com muita atenção acabará por notar.
Mas o que é mais notável, em relação a este Clássico das Montanhas e dos Mares, é o facto de ter tido uma importância enorme na cultura chinesa. Isso ainda hoje é visível, porque nessa cultura continuam a atribuir-se a determinadas espécies algumas características misteriosas - e.g. o corno do rinoceronte aumenta o poder sexual - que podem, ou não, ser verdade. Alguns ainda acreditam que seja, outros já não... mas será que comer um Shuyu verdadeiramente curava a tristeza? Não será fácil encontrar uma criatura como essa, mas fazendo fé na obra, não podemos deixar de nos interrogar como terão sido inventadas muitos dos estranhos animais que este texto diz existirem em algum lado. Será que alguém, em alguma altura, acreditou tê-los visto com os seus próprios olhos? Somos levados a pensar que sim, mas como puderam ser testadas aquelas características mais estranhas que eram atribuídas a alguns deles?
Não encontrámos qualquer lenda que o explicasse, mas uma história atribuída a Shennong - mais conhecido na cultura ocidental como o suposto descobridor do chá - dá uma possível sugestão. Tal como se diz que este Shennong, que se supõe que terá vivido por volta do século XXVIII a.C., terá em dada altura testado todas as ervas para apurar as suas características individuais, é possível que também se tenha acreditado, em outros tempos, que o autor do Clássico das Montanhas e dos Mares tenha procurado sintetizar todas as criaturas e as suas respectivas características, estudando-as na primeira pessoa e chegando a comê-las a todas por algo a que podemos chamar uma pura curiosidade científica. Será que isso aconteceu? Pelo conteúdo da obra somos levados tacitamente a acreditar que sim, mas as respostas sobre todas estas coisas são meras teorias e nada mais.
Vale a pena ler esta obra nos nossos dias? Caso a consigam encontrar em tradução - existe em chinês e pelo menos em língua inglesa - acaba por ser um texto agradável para quem se dedica ao estudo da forma como os animais foram sendo representados na literatura de outros tempos. Os restantes possíveis leitores até podem encontrar, aqui e ali, algum pormenor que os faça sorrir, mas existem textos muito mais interessantes para eles.