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Mitologia em Português

29 de Novembro, 2021

O dia em que Deus bebeu demais

Volte-se agora a temas mais interessantes. Falar de um lendário dia em que Deus bebeu demais implica recordar parte do que aqui dissemos quando falámos sobre a antiga Esposa de Deus - as crenças dos Judeus, e posteriormente dos Cristãos, não nasceram num vácuo. Elas são fruto de séculos e séculos de evolução. Assim, quem ler bem e com atenção o texto bíblico poderá apurar que à figura divina são aplicados um conjunto de nomes que lhe vêm de mitos e lendas de tempos anteriores, entre eles a designação El. Algumas dessas histórias até são referenciadas obliquamente no Antigo Testamento, para quem prestar muita atenção, enquanto que outras foram sendo progressivamente esquecidas. A que contamos aqui hoje provém de fontes ugaríticas com cerca de 3200 anos e pertence ao segundo desses dois grupos.

Terá este sido parecido com o dia em que Deus bebeu demais?

Conta-se então que El um dia decidiu dar uma festa. Convidou todos os outros deuses para ela - recorde-se, na altura este ainda era um panteão politeísta - e até lhes deu o direito de decidir que partes da carne queriam para si mesmos. E a história prossegue:

Os deuses comeram e beberam, / Beberam vinho até estarem cheios, / [Beberam] novo vinho até estarem bêbados.

Depois, o deus da Lua fingiu ser um cão e escondeu-se debaixo da mesa do banquete; duas deusas deram-lhe comida, até que o porteiro de El levou a mal toda a situação e lhes pediu que não o fizessem. Mas, depois, El continuou a beber mais e mais, até que teve de ser ajudado a regressar para sua casa, e:

El caiu como o corpo de um falecido, / El tornou-se como aqueles que descem ao submundo.

Para terminar esta pequena história, um deus confrontou-o com a ocorrência e duas deusas foram procurar os ingredientes para uma mistura que pudesse curar quem está bêbado, que incluíam pêlo de cão e fezes (entre outras coisas agora desconhecidas). O que isto tem de notável é que na fonte literária que nos chegou, esta pequena lenda do dia em que Deus bebeu demais é depois seguida por uma cura, supostamente real, para todos aqueles que beberam demais, e que até parece mencionar os mesmos componentes que a própria história. Seria, nesse sentido, a lenda uma espécie de mnemónica para uma cura médica, ou uma mera coincidência de circunstâncias? Não sabemos.

 

Mas... quem perceber menos destas coisas poderá querer fazer uma grande pergunta, i.e. será que é correcto identificar este El com o "nosso" Deus? Partilham, no Antigo Testamento, um mesmo nome, mas será isso suficiente para dizer que ambos até são uma só e a mesma figura?

 

A nós, parece-nos correcto dizer que El é um antecessor de Deus da mesma forma que o Zeus dos Gregos o era de Júpiter dos Romanos. Em várias outras fontes ugaríticas até podem ser encontrados vectores de ligação com o Antigo Testamento, e.g. uma das lendas ainda reconhecíveis até menciona as aventuras de um filho do profeta Daniel (ou Danel, neste original), um tal Aqhat; e todo este episódio pode até lembrar-nos, em linhas gerais, o da (futura) embriaguez de Noé. O caso da Esposa de Deus é flagrante nessa ligação, porque ainda pode ser encontrado na Bíblia dos nossos dias por aqueles que a forem ler com atenção e numa edição séria (mas, infelizmente, a maior parte dos leitores passa-lhe simplesmente por cima). Por isso, sim, esta lenda do dia em que Deus bebeu demais pertencia, anteriormente, à figura a que hoje chamamos "Deus", mas foi sendo esquecida ao longo dos séculos, até porque tinha uma ligação clara ao panteão politeísta dos Ugaritas, não fazendo qualquer sentido sem a presença de essas outras figuras divinas, que os autores do Antigo Testamento tentaram fazer esquecer o melhor que puderam...

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