O eterno mito de Nero Redivivus
A razão porque hoje aqui contamos o mito de Nero Redivivus * merece ser contada. Há algumas semanas vieram pedir-nos exemplos de um tipo de história lendária em que um rei desaparece mas se diz que voltará em alguma altura no futuro. Existem pelo menos dois exemplos muito significativos na nossa cultura ibérica (o nosso famoso Sebastianismo e o Rei Rodrigo), entre muitos outros pelo mundo fora (como o do Rei Artur e Avalon), e isto levou a que a mesma pessoa quisesse saber qual a versão mais antiga de uma história com essas características essenciais. Não é uma pergunta fácil de responder - até certo ponto, a vida de Jesus Cristo poderia ser incluída nessa categoria de potenciais histórias - mas uma das mais antigas versões que conhecemos merece ser apresentada aqui em virtude de possuir uma característica muito única e também pela sua influência significativa na cultura ocidental.
Neste tipo de histórias é vulgar que o monarca seja uma figura bondosa, um símbolo de esperança ou de uma época idílica que os crentes desejam que volte ao nosso mundo numa época presente ou futura. Porém, no caso do mito de Nero Redivivus, a história refere-se é, em alternativa, a uma figura maldosa que se pensava que voltaria no futuro para continuar o seu antigo reino de terror. Parece que toda essa trama derivou do facto de após a morte de Nero, em 68 d.C., terem surgido várias pessoas que diziam ser ele, e que em comum tinham habitualmente o facto de se parecerem com o falecido e tocarem lira, numa potencial alusão à agora famosa história do fogo de Roma.
Se fosse só isto o que havia para dizer sobre o mito de Nero Redivivus e provavelmente nem lhe estaríamos a dedicar estas linhas. No entanto, nos Oráculos Sibilinos, em sequências aparentemente associáveis a finais do primeiro século da nossa era, surge primeiro a ideia, numa forma escrita, de que este Nero tinha fugido para uma terra distante e andava a juntar um enorme exército para regressar e destruir completamente Roma (ou todo o Império Romano, já que o objectivo de toda essa sua destruição não é claro). O que isto tem de muito interessante é que as sequências em questão parecem ter sido escritas mais ou menos na mesma época que o bíblico Livro do Apocalipse, em que este mesmo imperador pode ser identificado na figura da Prostituta da Babilónia e/ou do misterioso Anticristo, como Santo Agostinho o fez na sua Cidade de Deus. Por isso, mesmo que hoje já quase ninguém conheça o breve mito referido acima, em dada altura ele marcou tão significativamente a cultura ocidental que esta sua história mereceu ser colocada por escrito e ainda pode ser encontrada, de uma forma oblíqua, num texto bíblico que continua a ser lido nos nossos dias.
*- O Latim Redivivus pode aqui ser traduzido como "retornado" ou "regressado".