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Mitologia em Português

19 de Janeiro, 2024

O livro escrito por João Brandão

Se falar sobre João Brandão, figura da história portuguesa, normalmente ultrapassaria os temas habituais, hoje temos de o fazer por uma razão pouco vulgar. Há alguns dias atrás, falando sobre "um tempo em que a violência e a criminalidade andavam à solta [em Portugal], criando um verdadeiro estado de terror (...) nas Beiras", o espaço Sal da História apresentou brevemente esta mesma figura, afirmando em dado momento que ele "em livro escrito na prisão, deixou uma lista de mais de 200 crimes não cometidos por si e cujos autores, afirmava, tentou punir". Já tínhamos ouvido falar da obra em questão, mas na altura falhámos em localizá-la, até porque não é propriamente um best seller nos nossos dias. Só agora o conseguimos fazer, em formato digital, pelo que achámos que poderíamos dedicar algumas linhas ao tema, já que as poucas pessoas que sabem da existência deste livro lhe parecem ter prestado pouca atenção.

O livro escrito por João Brandão

Conforme afirmado pelo Sal da História sobre este João Brandão, "O jornal O Conimbricense, que empreendeu uma verdadeira campanha contra os Brandões, atribuiu-lhe a participação em pelo menos 15 homicídios. Acabaria por ser condenado ao degredo pela morte do padre José da Anunciação Portugal." Tudo isso é verdade, mas o que nos interessa hoje é o momento anterior a esse degredo, em que este homem foi acusado da morte do Padre José da Anunciação Portugal, julgado e condenado por esse crime, mas estando preso em Lisboa ainda não tinha recebido a sua sentença final.

 

Segundo se percebe pelo livro aqui hoje em questão, foi mais ou menos nessa altura que veio a público um panfleto sobre os seus supostos crimes, da autoria de António Augusto Teixeira de Vasconcelos, com título João Brandão de Midões no tribunal da Comarca de Taboa. Na altura, esse escrito parece ter sido de alguma popularidade significativa entre o povo, e então o suposto criminoso decidiu, também ele, escrever para defender as suas próprias acções, mostrando quão falsas eram as imputações que lhe estavam a ser feitas.

Assim nasceu a obra que tem agora por título Apontamentos da Vida de João Brandão, por ele escritos nas prisões do Limoeiro, e que foi publicada em 1870. Não é uma autobiografia completa, mas uma breve apresentação da vida desta figura feita por ela própria e que se foca apenas nos momentos mais relevantes para a sua defesa. Nela, o autor admite alguns crimes e nega outros, como é natural, mas o que torna o texto particularmente digno de nota é o facto de em muitos casos ele até apresentar algumas provas daquilo que afirma em seu favor. Isto é complementado por uma espécie de anexo no final da obra, em que o autor revela os verdadeiros criminosos por detrás de alguns crimes que lhe andavam a ser imputados a ele. Ou seja, parece que aquela tal campanha contra este família dos Brandões, por parte do jornal O Conimbricense, de facto tinha mais de rumor e de difamação do que de verdade. Como o próprio autor diz em dado momento da obra:

Tudo o que tenho relatado [nesta obra], e que já de si parecerá incrível a quem ainda tem a consciência da honra e do pudor, é unicamente a amostra das perseguições por que hei passado, e que não chegaram, presumo, ao seu termo.

 

Mas será, então, que este João Brandão matou mesmo o tal Padre José da Anunciação Portugal? Será que ele era verdadeiramente culpado do crime que levou ao seu degredo? Quem for ler o livro escrito pelo suposto criminoso fica com uma resposta negativa na cabeça. Ele não parece ter morto o padre, não porque apenas o negue (ele não era um José Sócrates...), mas por existirem fortes provas da existência de um outro possível culpado, testemunhas que foram pagas para jurar falsamente, jurados que já odiavam o acusado antes de terem sido escolhidos para o seu papel, e até depoimentos ignorados de quem esteve com o padre escassos minutos antes da sua morte. Se isso não for suficiente para vos convencer da inocência do "herói", a própria obra mostra que o seu autor foi criando muitos inimigos ao longo dos anos, em virtude das suas actividades guerreiras e políticas. Quanto mais não seja, isto pode levantar a forte possibilidade de que a acusação neste crime tenha sido apenas e somente uma cabala para os seus inimigos se verem livre dele, até porque ele parecia ser muito amado pelo povo da sua região, uma espécie de herói local, como ainda o é hoje em dia...

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