O mito do Pastor Sifilo
Existem mitos que se encontram somente por acaso, e o de este Pastor Sifilo é um deles. Há alguns dias, enquanto escrevia sobre a sífilis - a doença sexualmente transmissível - o Sal da História referiu que esta foi baptizada "pelo médico italiano Girolamo Fracastoro que, num poema, atribuiu a doença a um castigo do sol, que terá virado a sua ira contra o pastor Syphilus, por venerar outra divindade". Toda a ideia não pôde deixar de nos fascinar, não são propriamente muitos os poemas épicos que têm doenças (horrendas) por pano de fundo*, e então decidimos obter uma cópia dessa obra - o seu título original é Syphilis sive de morbo gallico - e ver, afinal de contas, de que trata ela.
Este não é, contrariamente ao que parece ser muito afirmado online, um verdadeiro poema épico. É, isso sim, melhor descrito como um poema alongado sobre os horrores da sífilis, ou sobre como a saber reconhecer e "combater", em que o autor também incluiu uma pequena história mitológica da sua autoria com contornos que não podem deixar de relembrar os mitos da Antiguidade Clássica. E é isso que nos interessa especialmente aqui, esse mito puramente literário de um Pastor Sifilo. Não é uma história da Antiguidade, mas até o poderia ser, dada a forma como o seu autor decidiu representá-la, e como tal merece ser contada aqui:
Sucintamente, este Pastor Sifilo era um homem campestre como tantos outros, até que um dia se apercebeu que o seu monarca local tinha enormes campos de pastagem e muito gado. Isto levou-o a notar, por mero acaso, que o deus solar apenas tinha um touro (o do zodíaco) e um só cão, o que parecia tornar o rei muito mais digno de veneração religiosa do que o deus que veneravam até então. E assim se pensou, assim se fez, o monarca passou a ser visto como mais importante que esta divindade, mas... sem dúvida descontente com toda a ocorrência, o deus Apolo fez então com que este pastor passasse a sofrer de uma doença horrenda e completamente nova - e assim foi, em termos puramente mitológicos, criada a sífilis!
Claro que toda esta história não tem qualquer fundo de verdade, nem aparecia nas fábulas dos autores da Grécia e Roma Antiga, mas é uma forma curiosa de este seu autor, Girolamo Fracastoro, tentar explicar todo o flagelo como já o tinha visto feito em outros tempos, em que as punições divinas para os pecados humanos seguiam tramas muito semelhantes a esta. E, na verdade, esta história do Pastor Sifilo é mesmo o ponto alto da obra Syphilis sive de morbo gallico; salvo este breve momento ficcional, ela prende-se com a descrição, detecção e tentativa de cura dos efeitos da doença, o que não é propriamente um tema lá muito aprazível para um poema. Talvez o fosse na época da sua composição, admita-se que sim, mas nestes nossos dias de hoje a obra literária em questão já não tem muito interesse para o leitor comum, o que explica o porquê de até estar quase totalmente esquecida. Não fosse esta breve história que contém, a mesma que resumimos acima, e talvez já ninguém pensasse nesta obra com cerca de 500 anos...
*- Será que existem, sequer, outros poemas épicos sobre doenças? Se algum leitor ou leitora conhecer mais algum, por favor deixe essa informação ali em baixo nos comentários!