O mito grego de Órion
Falar do mito grego de Órion é quase imperativamente falar das constelações que podemos ver nos céus nocturnos, e que até fazem um pouco parte do final da história do mesmo herói. Mas, infelizmente, é hoje também difícil recordar a totalidade das suas aventuras. Isto porque, se muitos dos mais famosos mitos da Grécia Antiga nos chegaram por intermédio dos Romanos, e mais precisamente através das composições de poetas eminentes como Ovídio, já esta é uma história que ninguém parece ter desejado contar-nos de uma forma completa, ou numa versão que até possamos considerar como especialmente fidedigna e digna do maior crédito... mas porquê?
Curiosamente, até temos uma resposta para dar a essa questão, porque Ovídio, num dos seus trabalhos menos lidos, nos confessa ter vergonha de alguns dos episódios que aparecem nesta história. Em pelo menos um caso específico nem o conta, deixando apenas muito subentendido o que poderá ter acontecido, talvez com alguma esperança de que quem lhe lia as linhas já soubesse o resto. É, portanto, evidente que alguns elementos de todo este mito eram vistos, séculos após a sua composição, como muito inapropriados - recorde-se, por exemplo, o mito de Licáon, em que existe a possibilidade de que, na versão original, fossem sacrificadas crianças a esse rei (ou a Zeus), algo que causou desagrado em tempos mais tardios. E, nesse seguimento, é aqui quase possível distinguir duas tramas, que divergem em alguns dos pontos que podemos considerar mais problemáticos.
Uma versão conta-nos como foi o nascimento de Órion e de onde veio o seu nome. Segundo ela, quando alguns deuses andavam a passear pela terra (talvez naquele mesmo tempo em que também visitaram Baucis e Filémon?), foram à corte de um tal Hirieu. Por lá, foram servidos um bom banquete, comeram um enorme touro, e até ficaram tão satisfeitos com esse petisco que decidiram conceder um desejo ao monarca. Este tinha apenas um pequeno pedido, face ao falecimento da esposa que muito tinha amado. Pediu-lhes apenas um filho. Então - e é aqui que as coisas se tornam estranhas... - eles arrancaram a pele do touro, mijaram-lhe em cima, enterraram-na durante alguns meses, e de toda essa estranha sequência veio a nascer o herói, sem qualquer intervenção feminina, recebendo até o seu nome da urina divina que o gerou. Mas outra versão, talvez para evitar toda esta estranha trama, faz dele apenas filho de uma mortal e de Poseidon, deus dos mares, dizendo que em virtude dessa partenidade o herói conseguia caminhar sobre as águas!
O tempo foi passando e o herói foi crescendo, até que um dia foi à ilha de Quios. Por lá apaixonou-se por Merope, filha do monarca local, podendo tê-la violado (nas versões mais recentes apenas tenta fazê-lo, mas nas mais antigas parece tê-lo concretizado!), o que fez com que o pai desta o cegasse, possivelmente com a ajuda divina do avô da jovem, o deus Dioniso. Depois, em busca de redenção, Órion fez muitas viagens, conheceu Hefesto (deus que lhe deu auxílio através de um companheiro Cedálion), até que chegou à mítica terra em que o sol nasce, aí recuperando miraculosamente a sua vista. Ainda quis voltar a Quios, para vingar o que lhe tinha sido feito antes, mas já não conseguiu encontrar aquele homem que um dia o cegou.
Talvez por irritação, talvez por cansaço, talvez por ter decidido fazer outra coisa da sua vida, Órion decidiu então ir para Creta, onde se começou a dedicar à caça e passou a viver entre o séquito da deusa Ártemis. Pode ter tido 50 filhos com as ninfas de um rio, todos eles grandes caçadores, mas foi durante a sua permanência nessas florestas que surgiu a sua morte. Como foi ela? Existem pelo menos quatro versões:
- A deusa Aurora apaixonou-se por ele e quis levá-lo para o Olimpo. Isso enfureceu os restantes deuses, levando a que Ártemis o matasse com uma das suas flechas.
- Ele era especialmente amado por Ártemis, o que ofendeu o deus Apolo, irmão dela. Enganando-a, o deus de Delfos fez com que essa sua própria irmã matasse este homem, desafiando-a a atingir um ponto negro no oceano, que era, na verdade, a cabeça deste herói. Ela conseguiu fazê-lo, como é óbvio.
- Ele poderá ter tentando violar essa mesma deusa da caça, ou uma das suas companheiras, ofendendo a primeira de tal forma que ela teve de o matar, por muito que gostasse dele.
- Um dia, vangloriou-se que era capaz de caçar qualquer tipo de animal que a terra produzisse. Então, a deusa Gaia, personificação desse elemento, enviou o maior de todos os escorpiões que o mundo já viu, e este acabour por matar o herói.
Qualquer que tenha sido esse desfecho na versão mais antiga do mito, há ainda três elementos curiosos em toda esta trama. Um diz-nos que Esculápio ainda quis trazer de volta ao mundo dos vivos este herói, mas Zeus puniu-o, matando-o por sequer considerar essa ousadia. Outro ensina-nos que, posteriormente, Órion foi perdoado pelos deuses e colocado entre as estrelas do céu, juntamente com o cão que em tantas caçadas o tinha acompamhado e com o escorpião que o matou. E, finalmente, segundo os Poemas Homéricos, este homem foi um dos maiores que já existiu, em termos de estatura física, juntamente com os Aloidas.
Enfim, este é um mito que dificilmente conseguimos saber como era nos períodos mais antigos da Grécia Antiga. Talvez pela necessidade de excisar alguns dos seus elementos que foram sendo considerados mais ofensivos, toda a história foi sofrendo diversas alterações ao longo do tempo, não sendo sequer possível apurar até que ponto alguns dos seus elementos já faziam parte da história original. Se, por exemplo, o herói nunca se vingou da cegueira causada pelo pai de Merope, terá existido uma versão antiga em que o fez (nas actuais, o idoso esconde-se num palácio no interior da terra), ou será que, face ao crime do "herói", os deuses decidiram proteger um pai cujo único "crime" foi o de proteger uma amada filha? Não sabemos, o que bem serve para atestar o quanto já ninguém sabe sobre o mito que aqui tentámos recontar hoje...