O segredo de Ânio de Viterbo
Falar de Ânio de Viterbo parece-nos particularmente apropriado para um dia como o de hoje. Isto porque, se durante vários séculos ele se contou entre os mais famosos autores europeus, neste momento está quase esquecido - tanto quanto foi possível averiguar, os seus trabalhos nem sequer existem traduzidos nos nossos dias, o que, considerando apenas a primeira parte da história que vamos contar abaixo, poderia parecer muito estranho. Mas já lá iremos, é melhor começar pelo início de toda a história.
Quando aqui escrevemos sobre divindades lusitanas como Endovélico ou Atégina sentimos a necessidade de deixar muito claro que quase nada se sabe sobre elas. Quem disser o contrário, mente. E isso é factual, porque a pouca informação que nos chegou sobre a Lusitânia desses tempos foi-nos reportada por autores romanos, cujo propósito nunca pareceu ser o de documentar as crenças locais. Ou seja, ou eles nunca documentaram essas informações, ou os (poucos?) trabalhos em que elas constavam se foram perdendo ao longo dos séculos - e quanto poderíamos aprender sobre o passado ocidental se elas fossem reencontradas?!
Sucintamente, foi mesmo isso que Ânio de Viterbo fez. Não só ele reencontrou obras muito antigas, que se supunham perdidas para sempre, como também foi capaz de encontrar provas arqueológicas que atestavam as informações aí contidas, todas elas muito curiosamente desconhecidas até à data. E claro que isto era tudo muito suspeito - bastará recordar o caso do Evangelho Secreto de Marcos, com contornos semelhantes - mas o público em geral e alguns especialistas acreditaram... e não só acreditaram, como começaram a utilizar a informação que este autor tinha trazido à luz nas suas próprias obras, levando a ideias como aquela de Setúbal ser a cidade mais antiga de Portugal. E foi graças a essa descoberta que, em obras como a Monarchia Lusytana (do século XVI), foi então possível reconstruir uma espécie de história contínua que vinha desde o início dos tempos - na concepção cristã - até aos inícios da monarquia de Portugal... o que, sem essa ajuda preciosa, neste caso de um suposto manuscrito de Beroso encontrado por este Viterbo, seria completamente impossível!
Mas então, deixado esse primeiro tempo para trás, o que aconteceu às obras de Ânio de Viterbo? Ao longo do tempo as pessoas foram-se apercebendo que existiam algumas pequenas falhas nas obras que ele tinha encontrado. Se, por exemplo, ele verdadeiramente encontrou o texto de Beroso, até então apenas conhecido de alguns fragmentos vagos, como se conseguia explicar que nenhuma dessas sequências textuais já conhecidas aparecessem no texto agora reencontrado? Não vos parece estranho?
E é claro que existiam muitas outras razões para dúvidas - como na famosa inscrição mostrada na imagem ali de cima, de um "mármore antiquíssimo" gravado para celebrar "a vitória de Osíris contra os Gigantes", convenientemente encontrado pelo autor e que atesta o conteúdo de uma das obras que encontrou - que lá conseguiram mostrar a completa falsidade por detrás das muitas "descobertas" deste frade italiano, e então toda a sua produção literária passou a ser vista como completamente indigna de qualquer mínimo crédito, acabando por ser esquecida e votada ao completo abandono. Confesse-se até que da nossa parte a queríamos ler para a escrita destas linhas, mas não a conseguimos encontrar salvo por menções indirectas em autores como o da Monarchia Lusytana!
Face a tudo isto, talvez hoje faça sentido descrever Ânio de Viterbo como um criador de fake news e alguém muito à frente do seu tempo nessa estranha área. Incapaz de encontrar o que queria nos textos então existentes, criou novas fontes literárias (falsas) e vestígios arqueológicos (falsos) que confirmavam uma versão da história ocidental que lhe era muito conveniente. Conveniente, sim, mas também completamente falsa (!), em que figuras como Osíris, "Hércules Líbio", e tantos outros heróis e deuses da Antiguidade, aqui tornados meros humanos, tinham um papel principal, como que confirmando o Evemerismo de outros tempos. E, por essa mentira (piedosa?) das suas obras, acabou esquecido ao longo dos muitos séculos que foram passando...