O significado das Portas dos Sonhos
Um dos momentos mais crípticos da Eneida de Virgílio ocorre no final do sexto livro, onde são apresentadas duas portas dos sonhos. Recordando os respectivos versos, na tradução brasileira de Manuel Odorico Mendes, aqui ligeiramente adaptada para ser mais fácil de ler pelo leitor comum:
Do Sono há dois portões: saída, contam,
O de corno facilita às veras sombras;
Do que é de alvo marfim, terso e nitente,
Mandam falsas visões à luz os manes.
Na sua essência, isto quer dizer que no reino dos falecidos, de que então Eneias ia escapar, existem duas portas relacionadas com os sonhos. Uma delas é feita de corno, que é de onde vêm os sonhos ditos "verdadeiros", enquanto que a outra, do mais belo marfim, é a fonte dos sonhos "falsos". Esta é uma distinção muito antiga, que já vinha - pelo menos - desde os tempos de Aristóteles, e que até é mencionada por Artemídoro, mas qual é, na realidade, o verdadeiro significado da Portas dos Sonhos? Poderíamos aqui deixar extensas teorias sobre todo o tema, mas é preferível resumi-lo com o breve comentário que Sérvio fez a essa passagem do épico:
Neste ponto o autor segue Homero, mas com uma pequena diferença, pois Homero diz que os sonhos saem pelas duas portas, enquanto que aqui Virgílio indica que os verdadeiros sonhos passam através da porta de corno. O sentido poético é claro: ele quer dizer que tudo o que disse é falso. Porém, a fisiologia tem isto a dizer: a porta de corno representa os olhos, que são da cor do corno e mais duros do que as outras partes do corpo; eles não sentem o frio, como Cícero diz nos seus livros sobre a natureza dos deuses. A porta de marfim, por outro lado, representa a boca e os dentes. E sabemos que o que dizemos pode ser falso, mas o que vemos é verdadeiro. Por isso, Eneias é enviado pela porta de marfim. Há outro sentido: sabemos que o sono é representado por um chifre. E aqueles que escrevem sobre sonhos [- como Artemídoro! -] dizem que o que se vê nos sonhos tem efeito de acordo com a fortuna e as possibilidades da pessoa. E estas coisas estão próximas ao corno, daí a porta de corno ser vista como verdadeira. Já aquelas coisas que estão acima da fortuna e que têm muita pompa e circunstância são falsas, daí a porta de marfim ser vista como falsa, como se fosse uma porta mais ornamentada.
Em suma, esta espécie de metáfora revela-nos o significado da Portas dos Sonhos como uma distinção entre a verdade e a falsidade. Talvez tenha sido, como estas linhas parecem indicar, uma forma de Virgílio indicar que toda a história de Eneias era mera ilusão, uma fantasia conveniente dos seres humanos? Parece que sim, mas convidamos os leitores, como sempre, a formarem as suas próprias conclusões sobre todo este tema...