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Mitologia em Português

25 de Novembro, 2023

Onde ler sobre a Mitologia Lusitana?

Há alguns dias recebemos um pedido pessoal de uma pessoa que, no estrangeiro, queria aprender mais sobre a Mitologia Lusitana. Teríamos todo o gosto do mundo em aceder a esse pedido, em dizer-lhe o que ler, mas dar-lhe essa resposta não é de todo fácil, pelo que optámos por escrever estas linhas públicas, em vez de lhe dar uma réplica meramente privada.

 

Primeiro, e antes de tudo o mais, o que constitui a chamada "Mitologia Lusitana"? É, evidentemente, um conjunto de mitos e lendas que poderíamos associar ao chamado povo lusitano, ou seja, aos habitantes da antiga província romana da Lusitânia. O ainda-famoso Viriato foi provavelmente o mais conhecido de todos eles, e é ainda famosa a história de como ele conheceu o final das suas guerras contra os Romanos, mas o que mais sabemos sobre esse povo? Ele é mencionado, aqui e ali, nas obras de alguns autores do Império Romano, mas são raríssimos os instantes em que as crenças desse povo nos foram expostas. Procurar por elas em obras da Antiguidade Clássica é uma tarefa difícil, porque tudo o que pode ser encontrado nelas são, pura e simplesmente, pequenas migalhas dos seus tempos. E então, se as obras dos autores gregos e romanos não nos contam quase nada sobre a Mitologia Lusitana, onde a poderíamos encontrar?

Endovélico e a Mitologia Lusitana

Sabemos que os Lusitanos do seu tempo veneravam um conjunto significativo de divindades e criaturas - Endovélico, Atégina, ou o Larouco, entra muitas outras. E, é crucial deixar a informação seguinte muito clara, sabemo-lo apenas porque os seus crentes nos deixaram alguns ex-votos em que mencionam os nomes desses deuses e alguns elementos a eles relativos. Não contam, nunca contam, quaisquer histórias reais a eles relativas pela mesma razão que ainda hoje não o fazemos - basta pensar-se, por exemplo, que quando vemos uma imagem de Nossa Senhora na beira de uma estrada (e.g. o caso da misteriosa Nossa Senhora do Guincho), reconhecemos facilmente a sua forma, até aí podemos ler algum texto a ela associada (e.g. "Maria Florinda mandou colocar esta imagem à Virgem porque ela curou o seu filho"), mas isto quase nada nos diz sobre a natureza, os mitos ou possíveis lendas das figuras representadas. E porquê? Porque quem erege monumentos como esses está a escrever num tempo e espaço em que supõe que todos os leitores jamais irão esquecer os fundamentos por detrás dessas imagens, sendo o seu Larouco tão famoso como hoje é para nós, por exemplo, o Anjo da Guarda cristão.

O Larouco e a Mitologia Lusitana

Mas, continuando... sabemos portanto o nome de muitas dessas divindades, mas quase nada sobre os seus possíveis mitos e lendas, ao ponto de uma determinada pedra desses tempos lusitanos, outrora encontrada na Península Ibérica, já desconhecer se uma dada figura divina tinha por nome o masculino Fontanus ou o feminino Fontana... e se já nesses tempos, há aproximadamente 2000 anos, a informação em questão era desconhecida, como é possível esperar que ela seja conhecida hoje? Naturalmente que não faz muito sentido, neste contexto, que se possa conseguir encontrar uma obra literária sobre a verdadeira Mitologia Lusitana! Caso encerrado...? Não, ainda não, porque quem quiser conhecer o que ainda se sabe sobre esses potenciais mitos e lendas dos Lusitanos ainda hoje tem três alternativas:

Uma obra sobre a Mitologia Lusitana

Em primeiro lugar, a obra Religiões da Lusitânia, de J. Leite de Vasconcelos, publicada em três volumes no início do século XX, conta fielmente o que ainda se sabe sobre os deuses associáveis à antiga província romana em que os Portugueses de hoje vivem. Não contém, como é natural, as histórias completas dessas divindades, ou quaisquer grandes ciclos mitológicos a elas associadas, mas permite ao leitor conhecer o que verdadeiramente se sabe sobre elas de um ponto de vista histórico e científico.

 

Em segundo lugar, a obra Monarchia Lusytana, de Frei Bernardo de Brito, cujo primeiro volume data de finais do século XVI, conta a "nossa" história nacional desde o início dos tempos até ao nascimento de Jesus Cristo. E isso pode levantar uma questão enorme - como é que o seu autor sabia o que aconteceu? Que fontes usou ele para essa sua obra? É aí que, como diz a sabedoria popular, "a porca torce o rabo" - a sua obra, em especial neste primeiro volume, é parte ficção e outra parte apoiada nas obras de Ânio de Viterbo, ou seja, 48% ficção e outros 48% ficção, com os 4% restantes a se referirem apenas a factos muito ocasionais e difíceis de distinguir dos seus falsos companheiros.

 

E, em terceiro lugar, podem ser lidas obras de vão de escada, como aquela que um dia aqui aludimos em relação à judaica Lilith, em que os autores - ou, se preferirmos, os impuros inventores - pegam no pouco que ainda se sabe da Mitologia Lusitana e constroem verdadeiros romances em torno dos nomes das suas figuras. Relembre-se, a título de exemplo, aquela grande fantasia de Atégina que outrora aqui citámos:

No Equinócio de Outono, celebra-se o ritual que representa a descida de Ataegina ao Submundo. Segundo o que nos conta a tradição, Ataegina desce ao Submundo, em busca de Seu Amado Endovélico, que havia sido morto por um grande javali (que simboliza as Forças da Destruição, que desfazem a forma para que a essência possa renascer). Ataegina desce e encontra-se com seu amado, agora Senhor do Mundo dos Mortos: Enobólico, o Muito Negro. Ela, que é a força que a tudo vivifica, ao mergulhar nas trevas da Morte, abandona o Mundo dos Vivos à escuridão.
A imagem da Deusa fica sobre o altar nos meses claros do ano, mas no Equinócio de Outono, ritualiza-se a descida de Ataegina, guardando com segurança a imagem da Deusa, junto com a imagem de Endovélico, que é também guardada na véspera, quando se ritualiza a morte e descida do Deus ao Submundo, pela força do Javali Negro. Os ícones dos Deuses ficam guardados no sacrário durante os meses escuros e só são retirados seis meses depois, no Equinócio de Primavera, a Festa do Desabrochar da Vida.
Sempre que Ataegina desce, confio à Deusa e Senhora Nossa as sementes de meus sonhos. Pois Ataegina é, então, a própria Semente: que em busca de florescer novamente em Amor e Beleza, junto a Seu Amado, se enterra no Ventre Sepulcral da Terra Mãe. A semente, debaixo da terra, será roçada pelas Forças de Destruição do Submundo, que farão a casca da semente se putrefazer. Nesse processo, ela passará por dor e medo, numa verdadeira alquimia, no Caldeirão da terra, vermes e humidade do Ventre da Velha Dana. E deste caos germinal, surgirá o broto verde que se elevará, em busca do Sol: Endovélico (o que floresce), que aí sim, terá voltado a brilhar sobre a superfície. O broto crescerá, recebendo os beijos cálidos de Endovélico. O botão logo se mostrará por entre as folhagens, e eis que, no tempo certo, florescerá, e a Deusa, assim, retornará aos seus filhos, a Renascida, a Flor plena de Vida, Alegria, Beleza e Amor, Ataegina!
E junto com a Deusa, florescerão os sonhos que este filho devoto lhe confiou, e que junto com Ela, festejará a realização de cada um deles, assim como também aprenderá com Ela sobre a não realização daqueles que não vingarem, pois Ataegina é Senhora da Terra, da Lua e do Submundo, Deusa Tripla que reina sobre todos os Mundos, e que conhece o que vai nas profundezas subterrâneas de nosso inconsciente, no íntimo de nossa alma, e Sabedora disso, concederá sempre os frutos apropriados para a nossa colheita.

Isto não é, de todo, a Mitologia Lusitana, mas sim puras fantasias inventadas por alguém que pegou no pouco que se sabe de duas divindades lusitanas, inventou algumas coisas novas, o misturou com alguns famosos mitos da Antiguidade - os de Inana / Ishtar e Dumuzid / Tamuz, de Adónis, etc. - e o pretendeu fazer passar por histórias verdadeiras... que, provavelmente e como uma dada autora portuguesa, recebeu por inspiração divina de uma deusa que só podemos reconhecer como a Mentira, a estranha divindade dos Romanos e a de alguns romances medievais. O que estas obras apresentam são puras mentiras, e não merecem qualquer crédito!

 

Afinal... onde ler sobre a Mitologia Lusitana?

Face a tudo isto, sugerimos que quem quiser conhecer a Mitologia Lusitana leia, antes de tudo o mais, os três volumes da obra Religiões da Lusitânia. Em seguida, se quiser algo mais ficcional, poderá então ler o primeiro volume da Monarchia Lusytana. E, só depois, poderá até tentar ler obras dos nossos dias que clamam (falsamente) dar a conhecer a Mitologia Lusitana, mas que se esquecem frequentemente de informar os seus leitores que o que fazem é a construção de puras ficções, mais do que apresentar qualquer espécie de realidade do passado lusitano...

Sobre as obras como as desse terceiro grupo, preferimos sempre não as publicitar por aqui, já que a sua qualidade deixa constantemente muito a desejar - a título de exemplo, ainda há dias encontrámos, numa biblioteca portuguesa, uma obra em que uma seita secreta nacional, sobre a qual absolutamente nada mais se sabe, pelo módico preço de 15€ revela os seus grandes segredos, o que não pôde deixar de nos fazer rir a todos, tão grande a mentira por detrás dos seus autores, e tão cara a absurda fantasia que pretendia vender-nos...

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