"Otia Imperialia" de Gervasio de Tilbury
Estes Otia Imperialia, de Gervasio de Tilbury, poderiam ser apenas mais uma de incontáveis crónicas medievais. Têm algumas características do género, nomeadamente começarem no início dos tempos e depois prolongarem-se até à própria idade do seu autor. Pelo caminho, vão fundindo mito, lenda e história propriamente dita, apresentando até figuras como o Rei Artur. Porém, a razão que levou à sua apresentação aqui não é os dois primeiros livros que compõem a obra, que seguem muito naturalmente essas características, mas sim o terceiro dessa sequência, cujo tema é um pouco diferente.
Reproduzimos acima uma edição moderna do terceiro livro dos Otia Imperalia. Conta com o subtítulo, nesta tradução em Italiano "Le meraviglie del mondo", que é como quem relata, em bom Português, tratar-se este de um livro sobre as muitas maravilhas do mundo. Foi compilado no século XIII, com o seu autor ora a reportar coisas que diz ter visto com os seus próprios olhos, ora a citar o que foi lendo em muitas outras obras clássicas ou medievais. O tema é quase sempre o mesmo, as maravilhas que o mundo tem para apresentar, no sentido de coisas invulgares, causadoras de espanto, que podiam ser encontradas no mundo europeu, africano e asiáticos então conhecidos. Coisas como estas, um fragmento adaptado da obra total:
O mosteiro de Fruttuaria é na diocese de Turim em Itália. É famoso pela sua venerável tradição religiosa. Contém, ao lado da sua igreja dos santos, um cemitério em que os monges são enterrados em campas individuais. Mas se uma campa for aberta após três dias, nem os ossos nem as cinzas dos mortos serão encontradas no local. Isto foi testado e confirmado muitas vezes. Soube disto através de um monge fiável dessa região, que é um homem devoto e educado.
(...)
Existe um local [, o Averno,] entre Nápoles e Pozzuoli que parece ter sido um lago e em que o chão é muito lamacento. Se alguma criatura for levada a este local morre instantaneamente. Até os pássaros que o sobrevoam são imediatamente afectados pela atmosfera do local e morrem pelos seus efeitos. Lucrécio escreveu sobre este local (...).
(...)
No reino de Arles, na província de Embrun, no castelo a que chamam Noth, existe uma rocha gigantesca. Se empurrarem esta rocha com o dedo mindinho podem movê-la muito facilmente; porém, se o tentarem fazer com todo o vosso corpo, ou com imensos bois, não será possível movê-la.
Essencialmente, são temas como estes que podem ser encontrados no terceiro volume da obra Otia Imperialia, de Gervasio de Tilbury, um conjunto de factos presos entre ficção e realidade, onde nem sempre é fácil perceber onde acaba um e começa o outro. Por exemplo, uma secção sobre o Velo de Verónica pode ser seguida por uma sobre o Castelo do Ovo (e outras lendas de Nápoles), sem que se saiba muito bem o que pode ser encontrado a cada novo parágrafo. O que, queiramos ou não, não pode deixar de ser interessante para o leitor, que nos dois primeiros livros da obra encontrava apenas uma história - ou, se preferirmos, uma espécie de mitologia - contínua da história ocidental.
Em suma, o que pode ser dito sobre esta obra, os Otia Imperialia de Gervasio de Tilbury? Os seus dois primeiros livros preservam uma espécie de crónica medieval que funde repetidamente mito e realidade, mas o seu verdadeiro encanto surge apenas no terceiro livro, que é uma espécie de compilação de alguns mitos e lendas da Idade Média. Como tal, é uma obra indicada para quem tenha um interesse específico nesses temas, mas talvez e também para quem quiser conhecer um pouco mais de aquilo em que se ia acreditando na época.