Porque são os santos sempre representados de forma igual?
Ontem vieram fazer-nos uma questão muito pouco vulgar - porque é que Santo António (de Lisboa ou de Pádua) é representado sempre da mesma forma? Pense-se no tema por um breve instante - quando imaginamos figuras como Jesus Cristo, Santo António, São Pedro, Santa Isabel, etc., tendemos a imaginá-las de uma forma muito específica e consistente. Por exemplo, Santo António costuma ser visto assim:
Porque acontece isto? Porque é que raramente vemos um Santo António de barba, um Jesus Cristo negro, uma Nossa Senhora com a pele tingida pelo sol, ou um Judas Iscariote sem os seus dinheiros?
De uma forma simplificada, podemos dizer que isto acontece porque quem tende a pintar essas representações recorre a manuais iconográficos, em que é dito como determinadas figuras e cenas devem ser representadas, até para que possam ser facilmente reconhecidas pelo público. Agora, se existem vários manuais desta natureza, tanto para iconografia do paganismo como já da era cristã, os exemplos de hoje provêm de uma obra de meados do século XIX chamada Manuel D'Iconographie Chretienne, Grecque Et Latine, que se foca na pintura. Ironicamente, não nos recordamos de ter visto o nosso Santo António por lá, mas podemos deixar aqui alguns exemplos de como essa sugestão é feita.
Imagine-se que alguém queria pintar o confronto do Rei Herodes com os chamados três Reis Magos. É dito que o deveria fazer assim:
Um palácio. O rei Herodes senta-se sobre o seu trono numa sala. Em frente dele, os três reis magos estendem as suas mãos em direcção a ele. Do lado de fora, os judeus, os escribas e os fariseus falam entre eles.
Na mesma obra também estão contemplados alguns exemplos menos comuns. Por exemplo, o confronto mortal de São Pedro com Simão Mago deveria ser representado assim:
Casas; o templo. No ar, dois demónios alados. Simão o Mago caído por terra, com o crânio partido. Pedro estende a mão e ameaça os demónios. Próximo dele, uma multidão de homens.
Como as duas imagens acima permitem compreender, estes esquemas não eram totalmente fixos, e até permitiam alguma imaginação pessoal do artista - Simão Mago é aqui visto ainda em pleno ar, antes de cair, mas com São Pedro já a fazer as suas ameaças, enquanto uma multidão assiste a toda esta cena do confronto mágico.
Manuais como estes permitem identificar muitas cenas cristãs e as personagens que nelas intervêm, mas desenganem-se aqueles que têm o sonho secreto de ir a igrejas e, de uma vez por todas, saber a identidade de todos os santos nos altares. O manual que consultámos nem sempre é tão específico como nestes exemplos. Assim, sobre Hipólito de Roma é apenas dito que ele deveria ser representado "jovem, com pouca barba", enquanto que São Cipriano deve ser "jovem, [de] cabelos frisados, [com] barba grande e separada em duas". Será que outros manuais, mais específicos, são usados para a estatuária, de forma a representar um santo não pelos seus episódios conhecidos mas por um conjunto de elementos que transporta consigo? Faria todo o sentido que sim, mas esse elemento apenas surge em alguns dos santos desta compilação - por exemplo, de um deles é dito que deve transportar a cabeça nas mãos.
De toda esta forma se explica o porquê de existir uma grande horizontalidade na forma como são representados os santos cristãos, ou o porquê de certas cenas mitológicas serem sempre apresentadas de uma forma muito semelhante no Renascimento. Isso acontecia, e acontece, porque essas representações seguem um determinado modelo, que diz ao artista como ele se pode assegurar que a sua representação da personagem X ou cena Y bate certo com a de outros artistas, permitindo ao mesmo tempo evitar que ele tenha de aprender um conjunto infindável de temas somente para precaver o caso de, um dia, alguém querer representar a morte de Maria Madalena.
Alguma dúvida?