Porque usamos os números árabes? O "Liber Abaci"!
Perguntar porque usamos os números árabes em Portugal, e nas civilizações ocidentais, é algo em que as pessoas pouco pensam hoje em dia. Sim, até (ainda) aprendemos os números romanos na escola, e eles ainda nos levantam algumas questões - o 4 deve ser escrito IV ou IIII, como devemos o escrever mil, etc. - mas a pura existência de dois sistemas numéricos levanta a ideia de que terá existido um período em que uns deixaram de ser utilizados e outros passaram a sê-lo. É evidente que isto não aconteceu de um dia para o outro, nunca houve um momento específico em que alguém dissesse "hoje escrevemos III mas amanhã vamos passar a escrever 3", mas então... porque passámos a utilizar esses novos algarismos em oposição aos que o Império Romano utilizou durante séculos?
A resposta passa por um homem chamado Leonardo de Pisa, mas que ficou mais conhecido historicamente pelo nome de Fibonacci. O seu pai era um mercador, tinha de viajar bastante por motivos profissionais, e então em dada altura da sua vida o jovem deu por si na antiga cidade de Bugia, na Algéria, onde aprendeu os números árabes. Ele parece ter notado que esses outros números tinham diversos benefícios face aos números dos romanos, e então por volta dos seus 30 anos de idade, no ano de 1202, escreveu um livro sobre eles que nos ficou conhecido como o Liber Abaci, ou seja, o "Livro dos Cálculos".
Acima podem ser vistos dois momentos deste Liber Abaci. No primeiro, acima da linha cinzenta, pode ser vista a primeira utilização significativa daquilo a que chamou as "figuras dos árabes" numa obra da Europa Medieval, na sequência "9 8 7 6 5 4 3 2 1", a que depois o autor acrescenta o zero, "[0] a que árabes chamam zephir."
Um pouco mais abaixo, depois da linha cinzenta, pode ser vista uma tabela comparativa de alguns números romanos com os árabes, com intenção de mostrar, por exemplo, que era mais fácil escrever 4321 do que MMMCCCXXI, ou 3020 do que MMMXX. E sim, claro que isto é muito interessante, mas ambas as sequências vêm do primeiro capítulo da obra, em que Fibonacci pretendeu demonstrar o interesse destes caracteres... e, portanto, na verdade de que mais fala este seu Liber Abaci?
É um daqueles livros que mudaram mesmo o mundo, mas que já quase ninguém lê nos nossos dias, à semelhança do Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo (de Galileu), ou da obra Da Revolução das Esferas Celestes (de Copérnico). Visto que é de difícil acesso - não é propriamente possível ir a uma livraria dos nossos dias e comprar uma cópia desta curiosa obra - podemos então esclarecer o seu conteúdo. O Liber Abaci começa por esta apresentação dos números árabes, antes de se focar em explicar como realizar as quatro operações - multiplicação, soma, subtracção e divisão - com eles. Prossegue demonstrando os benefícios que tudo isto tinha para as transacções comerciais (relembre-se que Fibonacci estudou estes temas precisamente por razões comerciais), antes de se focar em alguns problemas matemáticos, terminando ao demonstrar como tudo isto podia ser utilizado na Geometria. Para nós, hoje, algumas destas sequências são mais interessantes do que outras, mas a puro título de curiosidade merece ser parafraseado aqui um exemplo de problema matemático constante na obra:
Suponha-se que um casal de coelhos dá à luz um outro a cada novo mês, e começa a fazê-lo apenas um mês após o seu nascimento - quantos coelhos terá o seu dono após o período de um ano? No início existe apenas um casal, no final do primeiro mês existem dois, do segundo três, do terceiro cinco, do quarto oito... até que, ao final do período de doze meses, ou um ano, existem 377 casais de coelhos!
Interessante, não é? Claro que estas mesmas contas também já antes poderiam ser realizadas com recurso aos números romanos, mas ao mostrar (muitos) exemplos como estes, o que Fibonacci pretendia fazer no seu Liber Abaci era demonstrar que elas eram muito mais fáceis de realizar com os números árabes. Como é natural, 19 - 1 = 18 ocupava menos espaço, e era muito menos complexo, do que estar a pensar em coisas como XIX - I = XVIII, até porque implicava alterar somente um dígito!
Então, e em suma, porque usamos os números árabes? Devemo-lo essencialmente a Fibonacci, em inícios do século XIII, por ter demonstrado no seu Liber Abaci que a utilização deste outro sistema, por oposição ao dos números romanos, era muito mais simples e resolvia diversos problemas do sistema anterior, tendo até múltiplos benefícios para os negócios, para os governos, para os cidadãos privados nos seus problemas diários, etc. E, se assim o era, porquê continuar a utilizar os sistemas mais antigos? Não havia qualquer boa razão para tal, e por essa razão os números árabes foram progressivamente substituindo os seus antecessores na cultura ocidental...