Qual a cidade mais antiga de Portugal?
O tema da cidade mais antiga de Portugal é um de aqueles que se suporia que nos nossos dias de hoje seria fácil de resolver. É, pensará a maior parte das pessoas, somente questão de se abrir um qualquer motor de busca e digitar meia dúzia de palavras por lá. Depois, dependendo do resultado em que se carrega, poderão encontrar-se referências a ela como se tratando de Braga (i.e. Bracara Augusta), Évora (i.e. Ebora Cerealis) ou Lisboa, entre muitas outras. Ou seja, são nomeados diversos locais, todos eles anteriores à nacionalidade, mas nunca é dito concretamente qual delas corresponde ao que procuramos. Ao mesmo tempo, sabemos que existem povoações muito antigas em Portugal - bastará recordar-se a presença de um antigo santuário a Endovélico no Alentejo, para se presumir que também existiu uma qualquer povoação por perto - pelo que é provável que existissem povoações, ou até mesmo cidades da altura, que entretanto foram esquecidas - relembre-se que até já cá falámos de algumas delas, no contexto árabe. Mas, então, qual é mesmo essa cidade mais antiga de Portugal?
Segundo a Monarchia Lusytana, uma curiosa obra escrita no Mosteiro de Alcobaça em finais do século XVI, a cidade mais antiga de Portugal - e até uma das mais antigas do mundo - era... Setúbal! E porquê essa? Segundo o autor, nessa obra que se propõe a contar a história do nosso país desde o início do mundo até ao século em que foi escrita, a cidade foi fundada por Túbal, neto de Noé, que em busca de um local em que viver, após aquele enorme e famoso dilúvio bíblico, atracou na região e a viu como um excelente local para se estabelecer. E, se prestarem atenção, o seu nome até aparece associado ao da própria povoação, Setúbal. De que mais provas precisam?
Bem, na verdade, certamente que uma questão se impõe - como é que um autor do século XVI sabia isto? A informação não aparece em textos da Antiguidade, nem na Bíblia... acreditando que não é mentira, uma mera invenção por parte do autor nacional, de onde vem ela? De facto, para nosso grande contentamento, o autor português, Frei Bernardo de Brito, diz-nos directamente a suas fontes literárias, e atribui esta informação a Beroso, autor do século III a.C. Contudo, quem a for procurar nas obras de Beroso que nos estão acessíveis não encontrará lá nada... "estranho", certamente, até que se entenda um problema completamente inesperado.
Na mesma obra, Frei Bernardo de Brito também atribuiu muita informação a um tal "Viterbo", i.e. João Ânio de Viterbo, autor do século XV, que um dia supostamente encontrou um conjunto enorme de autores históricos (perdidos) numa região do norte de Itália. E, curiosamente, entre eles contava-se a obra histórica de Beroso. Seria verdade? Posteriormente veio a apurar-se que não, que era tudo uma falsificação, possivelmente até pela mão do próprio Viterbo, mas ainda assim as suas supostas "descobertas" acabaram por marcar a História europeia durante pelo menos um século, como podemos aperceber-nos através das linhas presentes no autor nacional mencionado acima. Ou seja, se Setúbal era mesmo a cidade mais antiga de Portugal (e, relembre-se, até uma das mais antigas do mundo), era-o somente com base em informação inventada no século XV e que não encontramos atestadas em nenhuma obra histórica anterior à de João Ânio de Viterbo.
Deixando então de lado essa estranha possibilidade, é provável que a cidade mais antiga de Portugal tenha sido Lisboa. Ou, pelo menos, é o que pareciam pensar os autores latinos da Antiguidade, como Estrabão. A acreditarmos no mito de que ela foi fundada por Ulisses, tratar-se-ia, muito provavelmente, de um local ainda datado da mítica Idade dos Heróis, de um tempo indefinido em que a grande memória de Tróia* ainda povoava o imaginário popular. E, a termos de escolher uma cidade a que atribuir essa espécie de galardão, seria portanto essa a melhor opção, ou pelo menos aquela que é a mais suportada em informações, supostamente credíveis, de tempos da Antiguidade Clássica. Se existiam cidades ainda mais antigas, como o Santuário de Endovélico nos poderá fazer crer, os seus verdadeiros nomes, localizações e grandes histórias foram sendo perdidos nas areias do tempo...
*- Sobre Tróia, a pequena povoação portuguesa próxima de Setúbal, é curioso que Frei Bernardo de Brito também se refira a ela, dizendo que foi fundada posteriormente e tomou este nome por terem existido na zona muralhas enormes, como as atribuídas nos mitos gregos e latinos à grande cidade dos Poemas Homéricos. Ninguém parece ter assumido que fosse "A" verdadeira cidade de Príamo, como é óbvio, mas pode ter recebido o seu nome por relação com o local que Heinrich Schliemann pensou ter redescoberto.