Mariana Alcoforado e o mistério das Cartas Portuguesas
Hoje, falar de Mariana Alcoforado é obrigatoriamente falar das Cartas Portuguesas. Isto é um tanto ou quanto paradoxal, já que não se tem uma certeza absoluta de uma ligação entre essa suposta autora e a autoria das cinco cartas que compõem a obra, mas a verdade parece ser que, hoje, os dois elementos se encontram tão embrenhados que tentar separá-los é absolutamente impossível. E, por isso, comece-se pela realidade de toda esta história, antes de se avançar para uma espécie de mito que dela nasceu.
Nasceu a 22 de Abril de 1640 uma mulher portuguesa que nos ficou conhecida sob o nome de Mariana Alcoforado. Por volta dos 11 anos de idade foi forçada a entrar para um convento, o de Nossa Senhora da Conceição, na sua terra-natal de Beja. E toda esta história poderia ter ficado por aí, como aconteceu a muitas outras mulheres da sua época, não fosse o facto de ela ter vivido um tórrido amor com um oficial francês, que muitas vezes poderá ter visto através de uma janela bejense semelhante à representada acima. As datas são sempre difíceis de precisar, nestas coisas das paixões humanas, mas é provável que esse amor tenha tomado lugar algures entre os anos de 1656, em que a jovem tomou o hábito, e de 1668, em que a Guerra da Restauração terminou. E depois, um dia e por alguma razão incerta, tiveram de se separar - e aqui parecem terminar os factos comprováveis em toda esta história!
... Mas algum tempo depois foi publicado em Paris uma obra que ficou conhecida, na forma mais sucinta do seu título, como Lettres Portugaises (que é como quem diz, na nossa língua, Cartas Portuguesas). Datada de 1669, a obra contém cinco cartas que uma religiosa de Portugal escreveu a um seu amante originário de França. Pelo conteúdo podemos depreender que as primeiras três ficaram sem resposta, mas que uma suposta resposta à quarta terá irritado bastante esta freira, o que a levou a terminar, definitivamente, toda a relação. Provavelmente jamais saberemos o que aconteceu, mas... terão sido estas cinco epístolas verdade, um misto de ficção e realidade, ou nada mais do que uma mera invenção de algum autor francês?
As informação presentes nas cartas não nos permitem concluir, com absoluta certeza, quem eram os seus supostos intervenientes, mas a cultura popular da época diz-nos que a amante era esta Mariana Alcoforado, o seu amado um tal Noel Bouton, e que se separaram por uma decisão completamente unilateral, quando o francês recebeu uma carta de um irmão, aparentemente pedindo-lhe que voltasse ao seu país-natal, algo que ele parece ter feito demasiado rápido para o gosto da religiosa. Então, por algo que ele terá dito em resposta à quarta destas cinco cartas - é provável que outras as tivessem antecedido, mas não há quaisquer provas reais da existência de uma seguinte à última do quinteto - ela preferiu acabar toda a relação amorosa. Depois, como que desaparece de toda esta história até à data de 28 de Julho de 1723, em que sabemos que faleceu.
Mas terão sido as Cartas Portuguesas escritas por Mariana Alcoforado? Serão da autoria de uma outra religiosa que também avistava, da sua janela, as metafóricas portas de Mértola? Ou serão uma simples e completa ficção, talvez baseadas em relatos de soldados franceses que se poderão ter envolvido com freiras do nosso país? Por um lado, a tratarem-se de epístolas completamente reais, há, muito naturalmente, de se perguntar como é que elas foram obtidas para publicação - terão sido desviadas por algum mensageiro, ou terá sido o destinatário masculino a trazê-las a público, numa espécie de versão antiga de revenge porn? Por outro lado, a serem falsas, como se explica a pureza das palavras de amor, o conteúdo (quase) inofensivo, e uma declarada ausência de respostas a três das cartas*, ideias que parecem destoar quase por completo numa tradição epistolar que por essa altura já tinha mais de quinze séculos?
Estas epístolas não são as Heroides de Ovídio. Parecem reais, como se fossem verdadeiras cartas de amor escritas por uma mulher a um homem que já não a parece amar mais. Preservam todo um tipo de escrita amorosa que ainda hoje podemos encontrar em circunstâncias semelhantes. Elas soam a verdade, o que não corresponde, obrigatoriamente, a dizer que foram mesmo escritas por Mariana Alcoforado. Mas se o foram, ou não, é um mistério agora quase impossível de resolver, deixando-se a quem lê estas linhas o desafio de as ler e formular a sua própria opinião sobre o tema...
*- Quando estas epístolas foram publicadas em França, depressa se tornaram muito populares entre as suas elites. Então, posteriormente foram publicadas diversas "sequelas", e uma das mais curiosas diz que Noel Bouton até respondeu às epístolas desta freira, mas que a abadessa do convento interceptou essas cartas e as impediu de chegar à sua destinatária. Não temos quaisquer provas reais de que isso tenha sido mesmo verdade, mas essa pura lenda diz que as tais respostas foram passando de mão em mão até retornarem ao seu país de origem, onde foram publicadas... naquela que é, naturalmente, uma história apócrifa e destinada a isentar o cavaleiro francês de quaisquer culpas em toda esta situação.