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Mitologia em Português

28 de Outubro, 2021

Sobre o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro

Se, somente pelo seu nome, o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro nos remete para uma ideia muito enfadonha, de uma mera obra de natureza genealógica, ao abrirem-se as suas páginas é igualmente revelado um pequeno mundo de mitos e lendas que é tão digno de nota que achámos que o tínhamos de referir aqui.

O título do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro

Como o título já indica, o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, composto no século XIV por Pedro Afonso (um dos filhos do rei Dom Dinis), reporta as mais importantes linhas genealógicas que existiam em Portugal aquando da sua composição. Segue, quase sempre, uma estrutura formulaica - é mencionado um homem, depois a sua esposa, e é finalmente dito que ele "fez nela" uma determinada prole*. Muito importante e interessante para quem estuda História Medieval, enfadonho para a grande maioria dos outros leitores, até que se começam a notar, aqui e ali, alguns eventos um tanto ou quanto mais estranhos. Por exemplo, esta família nasceu da Dama dos Pés de Cabra e aquela veio de Dona Marinha, entre várias outras histórias. Algumas são relativamente realistas (o texto original é aqui citado com leves adaptações, para ser mais fácil de ler nos nossos dias):

Sueiro Bezerra teve filhos tão maus como ele, de tão maus feitos e que foram traidores, tanto o pai como os filhos, que pegaram em parte dos castelos na Beira, que tinham de el'rei Dom Sancho, e deram-nos ao conde Dom Afonso de Bolonha.

 

Outras destas histórias do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro até nos podem fazer rir um pouco:

Dom Rodrigo Gonçalves foi casado com Dona Inês Sanchez. Ela, estando no castelo de Lanhoso, fez maldade com um frade de Boiro, e Dom Rodrigo Gonçalves foi informado disto. E ele chegou e fechou as portas do castelo, e queimou a esposa e o frade, e a homens e mulheres e bestas e cães e gatos e galinhas e todas as coisas vivas, e queimou o quarto e panos de vestir e camas, e não deixou coisa móvel por queimar.

 

Enquanto que algumas delas se presume que sejam puramente lendárias, ficcionais:

Uma noite, antes de Nuno Gonçalvez d'Avalos morrer, veio um anjo onde ele jazia a orar, diante de sua cama (...). Ele perguntou-lhe quem era, e o desconhecido disse que era anjo que vinha por mandado de Deus, e que ele devia pedir um dom que tivesse por bem e que Deus lho outorgaria. (...) E ele pediu que o seu solar nunca fosse destruído. E o anjo lhe disse que pedia bem, e que Deus lho havia outorgado. E por isto pensam os homens que o solar de Lara nunca há de ser destruído.

 

Momentos como estes surgem, aqui e ali, neste Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. Não abundam - são, como parecerá natural, uma excepção em páginas e páginas de informação genealógica - mas contam-nos, pelo que parece ser um completo acidente, um conjunto de mitos e lendas medievais do nosso país. Muitas delas continuam conhecidas nos nossos dias de hoje - até demos dois exemplos ali em cima - enquanto que outras nem tanto, como as três que aqui citámos. Porém, este caso serve para mostrar o tesouro precioso de lendas que ainda se esconde em muitas obras medievais portuguesas, e que raramente está disponível a um público não especializado no tema, o que dá a (falsa) ideia de que uma mitologia puramente portuguesa é mais recente do que efectivamente o é... até quando?

 

 

*- A expressão é muito digna de nota, até porque aparece repetidamente por todo o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. "Fez nela", como se uma mulher fosse uma espécie de acessório que serve ao homem para fazer filhos, como se faz pão num forno ou sopa numa panela. Sinais de tempos passados...

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