Trigon na Mitologia Grega?
Trigon é, e não é, uma figura divina na Mitologia Grega. E isto pode parecer um pouco estranho, até que se explique o porquê - o seu nome aparece no livro Circe, de Madeline Miller (e, posteriormente, falámos aqui de A Canção de Aquiles, o seu livro anterior a esse), como se tratando de um deus-raia primordial cujo espigão da cauda dá o seu poder à lança de Telégono, servindo o seu veneno para mais tarde matar Ulisses e transformar Cila em pedra. É uma ideia curiosa, num livro a que voltaremos um outro dia, mas pode suscitar a questão abordada aqui hoje - será que esta figura já existia nas histórias dos Gregos e dos Romanos, ou foi apenas uma inovação inserida pela autora na sua trama?
A aqui famosa lança de Telégono já aparecia na Mitologia Grega, e foi com ela que o herói matou Ulisses, aparentemente por acidente. E escrevemos aqui "aparentemente" porque esse mito não nos chegou numa forma original e completa, mas apenas em versões tardias. Nelas, é brevemente mencionado, aqui e ali, que a lança era feita com o espigão de uma raia, um τρῡγών, cuja designação original pode (agora) ser lida como Trygon ou Trigon. Mas o nome, apesar da coincidência intencional, refere-se apenas a um animal, a um tipo muito específico de peixe, sem que algo de divino lhe seja atribuído. Ou seja, se no livro moderno esta figura é um deus, originalmente ele era apenas e somente um peixe.
A mesma ideia também pode ser visível no facto de existirem mitos antigos em que Cila obteve a sua forma monstruosa por intervenção de Circe - notavelmente, nas Metamorfoses de Ovídio - mas não existir nenhum, segundo conseguimos apurar, em que a figura desta feiticeira, ou alguma outra personagem associável a este possível Trigon, a tenha morto ou transformado em pedra. Existem algumas vagas histórias, hoje pouco conhecidas, sobre a morte desse monstro feminino, mas nenhuma verdadeiramente consistente com o que é apresentado na obra de Madeline Miller.
Sendo assim, se no seu geral, e salvo raras excepções, a obra Circe de Madeline Miller tende a respeitar o espírito essencial dos mitos gregos originais, a figura de Trigon é discutivelmente a mais significativa inovação que a autora fez à história, provavelmente para colmatar a falta de detalhes que os mitos, tal como os temos actualmente, dão ao final da trama sequencial de Odisseu / Ulisses. Não foi possível encontrar qualquer prova real da sua existência, enquanto figura divina, nos mitos da Antiguidade, onde o seu nome era, no sentido aqui relevante, apenas o de uma espécie de peixe.