"Zargueida", de Francisco de Paula Medina e Vasconcelos
Existem, entre os muitos poemas épicos que foram sendo escritos em Portugal ao longo dos séculos, alguns verdadeiramente surpreendentes, e esta Zargueida, escrita por Francisco de Paula Medina e Vasconcelos no início do século XIX, talvez seja uma delas. É, essencialmente, uma construção poética sobre a descoberta da ilha da Madeira, no século XV, por João Gonçalves Zarco. Dito isso, o tema gera quase automaticamente uma questão - como é que se consegue fazer um épico sobre um tema com esse, que dificilmente terá vilões para o herói defrontar? É aí que entra o famoso engenho que se requer a qualquer bom autor de uma obra semelhante.
A Zargueida é, essencialmente, um poema mitológico, na medida em que existe uma acção terrena relativamente limitada, mas que depois é complementada com um conjunto significativo de episódios com os deuses dos Romanos, inspirados por Camões (que o autor até cita em dados momentos), e com descrições das belezas da Madeira, elementos que enriquecem bastante a trama. Assim, o grande vilão é aqui o deus Pã - a cujos mitos já cá fizemos algumas alusões, e.g. a história que o une a Pítis - que tendo vivido na ilha da Madeira desde tempos imemoriais, a pretende manter somente para si próprio, enquanto que as pretensões dos Portugueses são auxiliadas por deuses como Baco e Júpiter. Entre os episódios mais significativos da trama contam-se a lenda portuguesa de Machim e Ana D'Arfet (ela é recontada de uma forma alongada); a fundação de Lisboa por Ulisses (um tema que parece ter sido sempre muito famoso nos épicos nacionais); e a catábase de Pã, quando este deus procura o auxílio de Plutão, deus dos mortos, para afastar os heróis nacionais da ilha que eles pretendiam povoar, levando a momentos surpreendentes como este:
Enquanto as negras Fúrias vozeavam,
As monstruosas Górgones fremiam,
As Hárpias alígeras grasnavam,
E os Centauros indómitos rugiam.
As Cilas, quais serpentes, sibilavam,
Quais javalis os Sátiros grunhiam,
E era tão dissonante a horrenda grita,
Quanto a glória de Zarco era infinita.
Pelo caminho, e num nível mais terreno de toda a acção, podem ser encontrados momentos tão deliciosos, e igualmente convidativos a uma viagem ao arquipélago descoberto por este herói, como o que se segue:
De um modo geral, esta Zargueida é uma obra digna de nota, por abordar de uma forma aventurosa um tema que, à partida, nos pareceria difícil de conseguir num poema épico. É uma obra que certamente recomendamos, e temos mesmo de recomendar, a todos aqueles que sejam apaixonados pelos encantos da Madeira; o texto até poderá já não ser fácil de encontrar num formato físico, mas pode ser encontrada online gratuitamente, por exemplo, na BND.