Luís de Camões amou uma Bárbara? As "Endechas a Bárbara Escrava"...
Falar de Camões e Bárbara é, necessariamente, falar de um conjunto de mitos e lendas portuguesas associadas ao poeta. Já cá falámos de algumas delas - por exemplo, o seu amor por uma tal Dinamene, e as razões que levaram à sua famosa cegueira parcial - mas uma outra, também de toda essa sequência lendária do autor dos Lusíadas, diz que ele nutriu amores por uma escrava negra que lhe não sobreviveu. Terá sido verdade? O que sabemos, de facto, sobre tudo isto?
Entre os poemas mais famosos associados a Luís de Camões conta-se um que tem hoje o título de Endechas a Bárbara Escrava. Assim, se uma "endecha" não é senão uma composição poética triste, todo o título parece conduzir-nos à ideia de que o poeta poderá ter tido uma escrava, de nome Bárbara, e que algo de menos positivo lhe aconteceu. Contudo, tudo o que sabemos sobre toda esta situação é aquilo que os agora famosos versos nos comunicam:
Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que para meus olhos
Fosse mais fermosa.Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E pois nela vivo,
É força que viva.
Analisar e interpretar estas Endechas a Bárbara Escrava de Camões ultrapassa os nossos objectivos habituais, pelo que é suficiente aqui apontar que os versos do poema, talvez um dos mais famosos deste autor, parecem, de facto, indicar que ele poderá ter tido uma escrava que amava mas que lhe faleceu. Mas, ao mesmíssimo tempo, importa também reconhecer que, salvo esta composição, pouco ou nada mais se sabe sobre toda a situação, não sendo sequer claro que o sujeito poético e o próprio autor sejam aqui um só. Como tal, tudo isto poderá ter um fundo de verdade - não se duvide disso! - mas poderá, igualmente, ser nada mais do que um poema puramente ficcional, em que algumas das palavras podem ser interpretadas para sugerir o brevíssimo conteúdo da lenda.
Por exemplo, "Parece estranha, / mas bárbara não"... porquê? Uma possível interpretação poderá ler estes dois versos como uma referência à sua proveniência não-ocidental, enquanto que outra conseguirá ver aqui uma potencial alusão à grande estranheza da morte, de uma Bárbara que já não o era como o tinha sido até então. Qual das duas está correcta, se alguma delas, é algo desconhecido.
São estas Endechas a Bárbara Escrava que unem o poeta a um possível amor para com uma mulher deste nome. Se se trata de uma lenda, ou se os versos da composição captam verdadeiramente um evento muito particular da vida do seu autor, é algo que ainda não se tem a certeza absoluta até aos dias de hoje... e isso é sempre um terreno muito fecundo para lendas, como já bem se sabe!