Como os Cristãos gozavam os Pagãos? Um exemplo de Zacarias de Mitilene...
Nos primeiros séculos da nossa era existiu uma verdadeira guerra entre Cristãos e Pagãos. Dos ataques dos segundos já sabemos muito pouco, fruto da evidente tentativa de destruição de documentos dos seus adversários, mas existem muitas obras que, como a de Orósio, nos mostram o lado contrário da situação, o que os primeiros tinham para dizer de aqueles a quem se opunham.
Nesse sentido, poderíamos apresentar os nomes de mais umas quantas obras, até do tão importante Santo Agostinho, mas o tema de hoje parte da chamada Vida de Severo, de Zacarias Retórico (também conhecido por Zacarias de Mitilene). Esta é uma obra em que o confronto directo entre as duas religiões, nos séculos V e VI da nossa era, ainda tem um papel (quase) principal. Conta-nos, naturalmente, parte da vida de Severo de Antioquia, mas refere repetidamente alguns momentos de confronto entre Cristãos e Pagãos. Para nós, um dos mais interessantes é aquele em que os adeptos da nova religião gozam com os seus antecessores, contando-nos o autor que sobre os antigos deuses eram ditas coisas como estas:
Olhem para Dioniso, o deus que é mulher [por não ter barba]! Olhem para Cronos, que odeia as crianças [porque as comia]! Olhem para Zeus, o adúltero e amante de jovens rapazes [i.e. o mito de Ganimedes]. Ali está Atena, a virgem e amante da guerra, e ali está Ártemis, caçadora e deusa que odeia os estrangeiros. Ares, aquele daemon, faz a guerra, e aquele ali é Apolo, que destruiu muitos [pelos seus oráculos]. Ali está Afrodite, a primeira dama da prostituição! E existe um padroeiro dos roubos entre eles [i.e. Hermes], e Dioniso é o deus dos intoxicados. E, vejam só, entre eles até está o insolente dragão, e cães e macacos, e até ninhadas de gatos - pois até eles [, os animais,] são deuses do Egipto!
É, naturalmente, muito simplista esta visão da religião da Grécia e Roma Antiga. Tem o objectivo claro de ridicularizar até os grandes mistérios das antigas religiões, nas suas múltiplas faces, mas preserva-nos, queiramos ou não, um momento curioso da história europeia, o da grande decadência final do Paganismo, em que os opositores são agora construídos como completos tolinhos que continuam a acreditar nas "fábulas das velhotas". Por um lado é triste, mas por outro podemos, através de linhas como aquelas que ali reproduzimos, saber como poderá ter sido viver numa religião que não é a nossa em outros tempos...