O que era a Serração da Velha?
Hoje, naquela que é a data aproximada em que seria celebrada, falamos da Serração da Velha. Era uma festa que parece ter sido muito popular em outros tempos, sendo ela celebrada em Portugal, no Brasil e até em outros países, mas depois foi sendo progressivamente esquecida, ao ponto de ter desaparecido quase completamente por volta de meados do século XX. Não foi caso único - relembrem-se, por exemplo, as Festas do Imperador, com igual destino - mas dada a estranha ideia e iconografia por ela suscitada (ver um exemplo abaixo, da primeira metade do século XIX) decidimos que tínhamos de partir em busca desta tradição hoje já quase deixada para trás!
Infelizmente, depressa nos fomos apercebendo que há muito pouca informação sobre esta celebração da Serração da Velha. Por exemplo, nada de concreto se parece saber sobre a sua verdadeira origem, nem parece ter tido uma forma completamente estável, já que diferentes locais pareciam celebrar a data de formas diferentes. Assim, o apresentado em seguida é uma espécie de tentativa de reconstrução muito rude, baseada nos elementos comuns de dezenas de fontes literárias.
Esta celebração da Serração da Velha tomava lugar precisamente a meio do período da Quaresma, 20 dias depois do nosso Carnaval. Aparentemente, as pessoas reuniam-se ao cair da noite, correndo rapidamente para um local que não era estável, mas apenas anunciado à última da hora. Nesse local apresentava-se uma serra e um cortiço, este último com uma velha - humana ou puramente simbólica - no seu interior. Eram ditas algumas palavras, em algum momento esta figura idosa apresentava um pseudo-testamento, talvez jocoso, enquanto os populares no local instigavam todo o processo com versos mais ou menos complexos como "Serra a velha, serra a velha!" É possível, mas não muito certo, que tudo terminasse com a queima do próprio cortiço, juntamente com outros objectos de madeira - por alguma razão desconhecida, escadas e tripeças eram usadas frequentemente, como mostra ali a imagem... mas fosse toda a celebração assim ou de alguma outra forma similar, uma grande questão com duas faces é digna de nota:
Quem era esta velha e porque era ela serrada?
Em relação ao primeiro ponto, os documentos que fomos consultando parecem deixar claro que a "velha" era uma representação simbólica da Quaresma e das imposições alimentares que outrora existiram nessa altura do ano. "Serrá-la" representava, portanto, abrir uma excepção muito temporária (e provavelmente de apenas um só dia), às restrições perpetuadas nos 40 dias antes da Páscoa. Esta ideia é até confirmada por uma versão da celebração, que encontrámos atestada no Brasil de meados do século XVIII, em que o cortiço, ou um seu subtituto, era mesmo cortado ao meio com o objectivo de expor o que estava no seu interior, que eram algumas das comidas proibidas para a época... e que certamente eram comidas em seguida, sem que por isso se temesse a reprovação do pároco local.
Feliz ou infelizmente, toda esta ideia também poderá explicar o porquê da verdadeira celebração da Serração da Velha ter terminado. Com o decréscimo progressivo de imposições associadas à Quaresma - hoje, quem é que deixa de comer X ou Y por estar nessa altura do ano? Já quase ninguém o faz... - começou a deixar de fazer sentido dar-se esse "dia de descanso" às privações, e com isso o serrar da velha cessou de fazer sentido.
Mas, admitidamente, não sabemos como é que esta celebração nasceu. Desconhecemos o seu objectivo original. Olvidamos sequer se, em períodos muitíssimo antigos, terá sido utilizada uma verdadeira idosa em todo este processo, queimando-o ou serrando-a mortalmente. E, por isso, tudo o que podemos oferecer são, como já foi deixado claro acima, um conjunto de teorias sobre esta ideia da Serração da Velha. Se ela ainda pode ser encontrada em alguns locais, tanto em Portugal como no estrangeiro, há que clarificar que este era um dia festivo cujo processo não era totalmente horizontal, ou seja, que por ele ter o elemento X em dado local não implica que também o tivesse em todos os outros, o que torna difícil seguir os exemplos actuais como dignos dos antigos. Portanto, a sua origem, e talvez o seu verdadeiro significado, ficarão para ser revelados num dia tão inesperado como o da possível revelação da origem do fado, entre muitos outros mistérios da cultura nacional...