Sobre o Santíssimo Milagre de Santarém
Hoje íamos falar sobre o Santíssimo Milagre de Santarém, também conhecido como o Milagre Eucarístico, seguindo o nosso esquema habitual. Mas depois, à medida que investigávamos esse tema, apercebemos-nos de algo muito mais surpreendente do que a própria história que íamos contar hoje. Mas já lá iremos, por agora descreva-se a trama como o faz uma espécie de site oficial:
A 16 de Fevereiro de 1226, em Santarém, uma jovem mulher acometida por ciúmes do marido, dirige-se a uma feiticeira que lhe sugere ir à igreja e roubar uma Hóstia Consagrada para fazer um filtro de amor. A mulher roubou a Hóstia e escondeu-a num pano de linho que logo se manchou de sangue. Aterrorizada recolhe-se imediatamente em casa onde abre o lenço para ver o que tinha sucedido. Vê, maravilhada que o Sangue jorrava da própria Hóstia. Confusa a mulher colocou a Partícula numa caixa do seu quarto mas desta, durante a noite começaram a soltar-se raios de luz que iluminaram o aposento como se fosse dia. Também o marido se apercebeu do estranho fenómeno e começou a interrogar a mulher que foi obrigada a contar-lhe tudo.
No dia seguinte os dois esposos informaram o Pároco, que se apresentou em casa deles para levar a Hóstia e transportá-la em solene procissão, para a igreja de Santo Estêvão, acompanhado de muitos religiosos e laicos. A Hóstia sangrou por três dias consecutivos. Foi colocada em seguida num magnífico relicário de cera de abelha.
Em 1340 verificou-se um outro Milagre. O sacerdote abriu o tabernáculo e encontrou o vaso de cera rasgado em muitos pedaços: em seu lugar estava um vaso de cristal com o sangue da Hóstia misturado com a cera. Ainda hoje a Sagrada Partícula se guarda num Trono Eucarístico do século XVIII, sobre o altar principal.
A uma primeira vista, esta lenda do Santíssimo Milagre de Santarém, a três tempos, nada tem de especial. Poderia ser uma lenda religiosa nacional como tantas outras, mas quando a lemos nesta forma moderna deparámo-nos com o facto de ela ser ligeiramente diferente de aquela que tínhamos conhecido através de fontes literárias mais antigas. Então, fomos voltando atrás no tempo, fonte atrás de fonte, e vimos que elas eram relativamente consistentes, e que a terem surgido alterações na história acima elas provinham de uma data desconhecida entre inícios do século XIX e os nossos dias. Eventualmente lá encontrámos uma obra de título História admirável do Sanctíssimo Milagre de Sanctarém, de inícios do século XVII e da autoria de Pedro de Mariz, sacerdote conimbricense, que relata uma versão antiga do milagre que pôde ler no local, ainda em Latim, e que depois traduziu para o Português do seu tempo. Reproduzimos o texto abaixo, mas com algumas alterações para facilitar a leitura nos nossos dias:
No tempo em que no dito reino [de Portugal] reinou o cristianíssimo varão, el-rei Dom Afonso III (...) aconteceu na dita paróquia [de Santarém], na rua que se chama "das esteiras", estar uma mulher casada muito mal com o seu marido, e neste ódio permaneceram por muito tempo. Até que um dia aquela pobre mulher tomou conselho com uma malvada judia, para que, pela sua maldita arte, lhe desse algum remédio com que se abrandasse e acabasse aquele furioso ódio em que estava com seu marido. Ao que a judia, aconselhada e induzida pelo demónio, respondeu, dizendo-lhe: "Se quiseres alcançar o remédio que pedes, finge-te enferma e pede com diligência o Corpo do Senhor para comungares, que te não será negado, e eu então farei com ele tudo o que me pedes." Assim se pôs logo tudo para obra. Ministraram à mulher o Santo Sacramento, mas ela não o consumiu, assim como a malvada judia lhe o tinha ensinado; antes, dentro na sua boca, entre as queixadas, o guardou por tão subtil arte que nem o sacerdote, nem pessoa alguma do povo, a entenderam. E com ele assim escondido esperou até que todos se saíram. Então, ficando ela só, tirou o sacrosanto sacramento da boca onde o tinha e envolveu-o num pano que consigo trazia, determinando a coitada levá-lo à malvada judia.
Feito isto, indo ela para casa da judia com o Santo Sacramento no pano escondido, aconteceu a caso que a gente que estava na rua que se chama da Santo Estêvão viram que do pano que ela levava lhe caíam, perante todos eles, gotas de sangue fresco. Espantados eles do caso, lhe perguntaram que era aquilo. Mas ela, dentro em si confusa e perturbada, se tornou, muito envergonhada e afrontada, a sua casa, de onde primeiro saíra. E logo pôs e guardou em uma arca o pano com o Santo Corpo do Senhor. E não sabia o que fazer.
Chegada a noite daquele mesmo dia, e lançadas na cama a mulher e o marido, viram ambos que daquela sua arca, onde estava o Corpo do Senhor, saíam raios de sol, tão claros como os do meio dia. E não sabendo o marido a causa de tal maravilha, perguntou à mulher que coisa era aquela. Então lhe contou ela tudo o que era acontecido naquele particular, muito miudamente.
Tanto que foi manhã, o marido se logo à dita igreja, e descobriu e contou aos clérigos tudo o que acontecera. Os quais, com o demais povo daquela vila, todos juntos em uma grande procissão se foram à casa onde acontecera o milagre e levaram o Corpo do Senhor da dita arca até à dita igreja; vendo todos esta o corpo de Cristo numa parte do pano, com algum sangue nele mesmo, o qual milagre foi visto por todos os que presentes se acharam. (...)
Puseram o Santo Milagre dentro em uns pedaços de cera, a qual ainda agora se guarda na mesma igreja (...) e está aparecendo na cera o sangue quase negro, e assim esteve nela muitos tempos. Depois acharam dentro do meio da cera uma ampola de vidro muito pequena, e dentro a mesma ampola o corpo do Senhor. (...) E aparece dentro da ampola a muitos em diversas semelhanças do Filho de Deus feito homem, umas vezes crucificado, outras vezes nos braços da sua Mãe Santíssima, e outras vezes de outras maneiras, assim como ele mesmo é servido. E aquela ampola está em outro vaso de prata sobre dourado.
Que a "feiticeira" ou "bruxa" até fosse, na verdade, uma "mulher judia" é uma alteração menor, feita para não difamar toda uma religião em épocas mais recentes (sinais dos tempos, como na lenda de Santa Iria?), mas o curioso da obra deste Pedro de Mariz é que, apesar de ser sacerdote, ele quis confirmar todo este milagre. Após uma primeira visualização de tudo isto, pediu ajuda ao pároco local, que lhe permitiu uma visualização mais pessoal de tudo o que este milagre tinha envolvido.
A arca refere ao primeiro milagre do Santíssimo Milagre de Santarém aparentemente já não existia (existiriam provas de fogo no seu interior?), mas o autor ainda pôde ver a "beatilha" da mulher (com sangue seco), um recipiente onde estava o sangue com alguns pedaços de cera (e o autor até pensou em pedir um deles para si, para análise, mas não o fez por temer que tivessem ainda parte da hóstia), e a chamada "ampola angélica", i.e. aquela que surgiu por milagre. Depois, colocando uma vela por detrás desta última, pode ver no seu interior sangue seco, algum sangue ainda líquido, e ainda restos de uma substância branca, que pensou ser a hóstia... e, de facto, fez até um desenho do recipiente, que reproduz no seu livro e que mostramos abaixo, juntamente com a versão da fonte acima (Pedro Crasbeeck era apenas o impressor da obra em questão, para quem ficar com essa dúvida):
Se a versão mais antiga desta lenda do Santíssimo Milagre de Santarém diz que as pessoas conseguiam olhar para este mesmo recipiente e ver diversas imagens sagradas no seu interior, Pedro de Mariz também fez o seu teste e, além do já descrito acima, não conseguiu ver nada de especialmente místico nesta "ampola angélica". Por isso, caso queiram tentar por vocês mesmos, onde se encontra ela, nos nossos dias de hoje?
Infelizmente, não é de fácil acesso. Na primeira das imagens acima pode ser vista uma "Relíquia do Hóstia do Milagre"; no seu interior pode ser visto este pequeno recipiente, ligeiramente inclinado para a direita, como mostra em pormenor a terceira parte da imagem acima. É curioso que na gravura possa ser vista uma espécie de rosca no topo do recipiente, mas hoje em dia a mesma ampola já não a parece ter. De facto, a sua forma parece agora bastante diferente e o recipiente tem menos substância no seu interior. Porquê? Terá sido por algo que lhe aconteceu no tempo das Invasões Francesas, terá o original sido substituído por algo muito diferente? Fica a questão para quem gostar de pensar nessas coisas.
Hoje, a outrora-famosa hóstia deste Santíssimo Milagre de Santarém já não sangra. Tanto o recipiente com o sangue, como a ampola, estão no alto de um pronunciado altar, o que torna difícil aos crentes vê-los com os seus próprios olhos. Desconhecemos se a "beatilha" da mulher, essa cidadã pecadora e sempre anónima, ainda pode ser vista no local. Mas, se toda esta lenda do também-chamado "Milagre Eucarístico de Santarém" tem mesmo um fundo de verdade, porquê isolar as suas provas assim? Se, conforme a versão mais antiga da lenda, os crentes sentiam uma experiência profundamente mística ao olhar para o interior da "ampola angélica", porque não permitir-lhes esse acesso real, mesmo que atrás de um vidro protector? Fica, mais uma vez, a questão, para todos aqueles que forem a Santarém e visitarem a Igreja de Santo Estevão, também conhecida como Igreja do Santíssimo Milagre em virtude dos eventos aqui descritos...