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Mitologia em Português

11 de Março, 2020

Toda a verdade sobre Lilith, a "primeira esposa de Adão"

Achámos que seria importante mostrar o que é - e o que não é - verdade na sequência mais famosa de um "mito" associado à figura de Lilith, uma espécie de história nunca contada de uma figura conhecida por supostamente ter sido a primeira esposa de Adão. Fazêmo-lo porque há alguns dias nos envolvemos numa pequena controvérsia com um novo livro sobre essa figura, que mantém e perpetua as fantasias do costume. Portanto, indo ao que importa.

Lilith e a serpente

Se existiram, ao longo dos séculos, várias referências ao nome desta figura, a primeira fonte literária que a associa a Adão é o Alfabeto de Ben-Sira, possivelmente dos século VIII-X da nossa era. Este facto é muito repetido, repetido até à exaustão e fantasiado até mais não, muitas vezes num horrendo discurso anti-homens e pró-mulher que nunca parece ter ouvido falar de "igualdade de géneros". Mas, convenientemente, nunca é contado aos leitores o resto da história. Apresente-se sucintamente o Alfabeto de Ben-Sira e veja-se onde isso nos leva:

 

O texto começa com a concepção miraculosa de Ben-Sira. O pai dele, Jeremias, foi forçado a masturbar-se numa casa de banhos, sob pena de ser sodomizado. Mais tarde, quando a sua própria filha foi a essas mesmas termas, engravidou do sémen do próprio pai. Sete meses depois deu à luz uma criança com dentes e capaz de falar desde a sua primeira hora, que desde tenra idade se mostrou muito sábio.

Algumas páginas depois Ben-Sira quis aprender a Tora, os textos sagrados do Judaísmo. Um professor disse-lhe que ainda era muito novo, seguindo-se uma sequência em que tenta dar um conjunto de instruções ao pupilo. Nesta sequência, a cada instrução o pupilo responde com uma frase de sabedoria e o professor parece supor que ele sabe algo de muito secreto. Alguns exemplos, que aqui traduzimos para Português:

 

O professor disse-lhe, "Diz alef. [i.e. a primeira letra do alfabeto hebraico]"

Ben-Sira respondeu "Abstém-te de te preocupares no teu coração, porque as preocupações já mataram muitos."

O professor entrou imediatamente em pânico - "Eu não tenho qualquer preocupação no mundo", disse, "excepto o facto da minha mulher ser feia."

(...)

"Diz mem" [ordena o professor].

[Ben-Sira responde] "São húmidos, doces e revigorantes, os sucos de uma jovem mulher. Mas os de uma idosa são amargos como fel. Eles esgotam a tua potência, como um poço cujas águas foram secadas pelo vento."

(...)

"Diz tav" [ordena o professor].

[Ben-Sira responde] "Compra muito ouro para ti mesmo, tudo o que for riqueza. Mas nunca digas a uma mulher onde estão as tuas riquezas, nem mesmo se ela for uma boa mulher."

 

Essencialmente, e de um modo geral, esta sequência tem um carácter misógino. Esse é um dos elementos que caracteriza a obra, uma misóginia evidente. Mas, depois, a trama continua com um relato da forma como Ben-Sira foi aprendendo a Tora, sendo dito que "pelo sétimo ano de vida não havia nenhum tema, grande ou pequeno, que ele não tivesse estudado". Essa sabedoria chegou aos ouvidos do rei da Babilónia, Nabucodonosor, que decidiu testá-lo. Seguem-se várias páginas em que Ben-Sira é testado, até que o monarca decide colocar-lhe 22 questões. A mais famosa de todas elas é a quinta, que surge quando o filho de Nabucodonosor fica doente, e que aqui traduzimos para Português:

 

Ben-Sira sentou-se imediatamente e escreveu um amuleto com o Nome Sagrado, em que inscreveu os anjos encarregados da Medicina pelos seus nomes, formas e imagens, e pelas suas asas, mãos e pés. Nabucodonosor olhou para o amuleto e perguntou - "Quem são eles?"

"Os [três] anjos encarregados da medicina. Depois de Deus ter criado Adão, que estava sozinho, Deus disse 'Não é bom para o homem estar sozinho'. Então criou uma mulher para Adão, feita de terra, como tinha criado Adão, e chamou-lhe Lilith. Adão e Lilith começaram imediatamente a lutar. Ela disse 'eu não ficarei por baixo', e ele respondeu 'Eu não ficarei por baixo, mas apenas por cima. Porque tu só és apta para a posição de baixo, enquanto que eu devo estar na superior'. Lilith respondeu-lhe 'Somos iguais um ao outro, pois ambos fomos criados da terra.' Mas eles não se ouviam um ao outro. Quando Lilith se apercebeu disto, ela pronunciou o Nome Inefável e voou para o ar. Adão rezou ante o Criador, 'Soberano do universo!', disse, 'a mulher que me deste fugiu.' De imediato Deus enviou estes três anjos para a trazerem de volta.

Deus disse a Adão, 'Se ela aceitar voltar, perfeito. Se não, deve permitir que 100 das suas crianças morram a cada dia.'  Os anjos afastaram-se de Deus e seguiram Lilith, que apanharam no meio do mar, nas águas em que os egípcios estavam destinados a se afogarem. Eles contaram-lhe a palavra de Deus, mas ela não quis voltar. Os anjos disseram-lhe 'Iremos afogar-te no mar.'

'Deixem-me!', respondeu. 'Eu fui criada apenas para causar doenças às crianças. Se a criança for masculina, irei ter domínio sobre ela oito dias após o nascimento; se for feminina, por vinte dias.'

Quando os anjos ouviram as palavras de Lilith insistiram que ela voltasse. Mas ela jurou-lhes pelo verdadeiro nome de Deus Eterno: 'Sempre que eu vos vir, aos vossos nomes ou às vossas formas num amuleto, não terei poder sobre essa criança.' Ela também concordou em ter 100 das suas crianças mortas a cada dia. Dessa forma, a cada dia 100 demónios morrem, e pela mesma razão escrevemos os nomes dos anjos nos amuletos de crianças jovens. Quando Lilith vê os seus nomes, ela lembra-se do seu juramento e a criança recupera'.

 

Esta história é raramente apresentada assim, na forma completa desta primeira fonte literária, porque fazê-lo implicaria mostrar que Lilith não é somente uma figura bíblica que recusou subjugar-se ao marido. É muito mais que isso, a não ser que se pretenda ocultar metade da questão, como, infelizmente, demasiados livros misândricos adoram fazer. De facto, a verdade por detrás de toda essa história é facilmente perceptível se o mito for apresentado no contexto original. Volte-se, por isso, ao facto de esta ser apenas uma das 22 questões colocadas por Nabucodonosor a Ben-Sira. De que falam as restantes? Podemos resumir os seus conteúdos de forma muito breve:

1- Salomão gostava da Rainha de Sabá, mas ela era muito peluda. Então, esse rei criou uma mistura depilatória que lhe fez cair o pêlo todo, antes de fazer amor com ela.

2- As 30 árvores que existiam no jardim de Nabucodonosor. Ben-Sira enuncia-as sem nunca as ter visto.

3- Uma espécie de jogo da cabra-cega.

4- O rei tenta enganar Ben-Sira para o matar, mas sai ele próprio enganado.

5- (Já visto acima, contém o relato sobre Lilith)

6- A filha do rei, que sofria de flatulência quase infindável, é curada.

7- "Porque foram os traques criados?"

8- Uma questão sobre o pêlo.

9- "Porque foram os mosquitos criados?"

10- "Porque foram criadas as vespas e as aranhas?"

11- "Porque é que o boi não tem pêlo debaixo do nariz?"

12- "Porque é que o gato come o rato?"

13- "Porque é que o burro urina na urina de outro burro, e cheira o seu próprio excremento?"

14- "Porque é que o cão e o gato são inimigos?"

15- "Porque é que o cão dá atenção ao seu dono, mas o gato não?"

16- Sobre a boca do rato

17- "Porque é que o corvo parece baloiçar ao andar?"

18- "Porque é que o corvo copula pela boca?"

19- "Porque não existem peixes semelhantes à raposa e à doninha?"

20- "Porque razão os descendentes de um dado pássaro não morrem?"

21- "Quem são aqueles que não são afectados pela morte?"

22- "Porque é que a águia voa mais alto que os outros pássaros?"

 

A maioria destas questões tem um aspecto comum - apresentam um contexto bíblico, ao qual depois acrescentam elementos completamente ficcionais. As linhas finais da questão número 21, por exemplo, relatam a expulsão do Paraíso, mas depois acrescentam-lhe um episódio adicional, em que Eva oferece parte da maçã aos outros animais (que a comem). Um único pássaro rejeita fazê-lo, criticando a mulher, e então Deus concede-lhe a imortalidade somente a ele, por ter respeitado as mesmas regras que todos os outros quebraram.

 

Inserida assim, no seu contexto original, a história de Lilith, enquanto suposta "primeira esposa de Adão", "sagrado feminino", ou até "mulher primordial", torna-se muito diferente. É uma mera fantasia por parte do autor (anónimo), que ao longo de toda a sua obra pega em vários momentos dos textos do Antigo Testamento e lhes acrescenta novos eventos, quase sempre com resultados puramente satíricos, que ainda por cima ocorrem numa obra de contornos misóginos.

Qualquer pessoa, independentemente do seu género, saberá reconhecer que numa obra satírica não se poderá considerar um punhado de frases como completamente reais e, ao mesmíssimo tempo, descartar todas as outras como grandes mentiras. Fazê-lo é enganar os leitores, demasiadas vezes em favor do seu próprio bolso e de lhes vender uma ideia infame, infelizmente já tão comum em obras sobre esta figura, de que os homens são umas bestas e as mulheres são as mais puras deusas, vilificadas por toda a sociedade patriarcal desde o início dos tempos.

A autora desse livro, que aqui ficará sem nome, assim o disse, quando nos revelou que o seu era um texto "talvez surrealista a partir da minha experiência de MULHER e onde os homens NÃO ENTRAM porque como é obvio não entendem nada, de facto de mulheres…Lilith é uma experiência no amago da mulher e nenhum homem a pode entender intelectualmente".

E, para terminar (que as linhas de hoje já vão longas), esse é um sexismo muitíssimo triste que a figura de Lilith é demasiadas vezes apropriada para apoiar. Ela não é uma figura que os homens invejosos procuraram esconder debaixo do proverbial tapete, não é uma pobre coitada que recusou acatar as ordens de um homem, é - repetindo o que aqui já foi dito há uns anos - "somente uma história fictícia medieval", que até então jamais tinha sido considerada esposa de Adão, e que surge numa obra ficcional com um contexto marcadamente misógino e satirico.

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