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Mitologia em Português

01 de Janeiro, 2024

Um canto XI dos Lusíadas?

Quem tiver um mínimo de conhecimento da literatura portuguesa saberá que Os Lusíadas, de Luís de Camões, são compostos por dez cantos... mas qual não foi a nossa surpresa quando soubemos da existência de um canto XI! Por isso, quando aqui principia o ano do quinto centenário do nascimento do poeta, nada como apresentar nas nossas linhas algo verdadeiramente surpreendente!

 

Supostamente, quando o poeta naufragou no Rio Mecom, numa das mais famosas histórias da sua vida (a par da sua cegueira parcial, ou dos seus amores por uma Bárbara), ele conseguiu salvar o seu famoso épico, mas apenas numa forma incompleta, com aquele final que ainda hoje temos nas nossas edições. Contudo, ele tinha escrito mais um canto, o décimo-primeiro, que foi levado pelas águas e acabou por dar à costa numa praia próxima. Foi apenas reencontrado muitos anos mais tarde, as suas linhas quase "totalmente comidas e apagadas pela espuma e o sal de quatro séculos de ondas", como é dito numa sua edição de 1937. Mas, infelizmente, desse suposto canto XI dos Lusíadas só nos chegou o seu final, com os versos que transcrevemos abaixo:

[O Descobrimento do Brasil]
Até 'qui vos cantei a larga terra
Que a linha inclina e o Capricórnio acaba.
E a pintura vos fiz daquela serra
Que por florestas mil no mar desaba;
Como nesta, sem mácula de guerra
Que de sangue tingisse a espúmea aba,
Aquele ergueu a cruz na selva agreste
Que em estrelas se abriu em cruz celesta.


[Os missionários, os donatários]
Depois vos já cantei como outros foram
E à vera lei de cima converteram
Os homens cor do cobre que devoram
Os guerreiros das tribos que venceram;
Como nas águas tórridas ancoram
As naus que às naus primeiras sucederam,
Levando a bordo, régios emissários,
Os ilustres primeiros donatários.


[O futuro do Brasil]
Império do Ponente, nova e quarta
Do lusitano mundo parte extrema,
As linhas dilatando sobre a carta
Em que a orla do Atlântico se estrema;
Porque Europa na Esfera se reparta,
Levada ao mando vosso e fé suprema,
Em proporções futuras vos cantei
Só por que vos cantasse, ínclito Rei!


[Dom profético]
Mas, Senhor, nem só de arte e só de engenho
O móbil das palavras se alimenta,
Que outro mais alto espírito mantenho
Que de razão e de razões se isenta;
Neste fogo divino em que ora venho
Novo canto a meus cantos se acrescenta,
Não com as invenções que a mente cria,
Mas com pura e acabada profecia.


Essas foram, ó Rei, imaginosas
Que Tétis descobriu ao forte Gama,
Pois em coisas se firmam numerosas
Que em meu e vosso tempo correm fama;
Esta vos dou sem formas enganosas,
Com forma só da invisível chama
Que o ceu ás vezes manda das alturas
Sobre as humanas suas criaturas.


[Rejeição das formas mitológicas]
Agora, pois, Calíope, me inclina
A mente, ás gregas musas inclinada,
Aquela rigorosa disciplina
Em nome dum só Deus de vez fundada.
Não mais se ajunte o mito á lei divina;
Seja tudo a palavra confirmada;
Que só com verbo claro e esprito puro
Romper se pode aos olhos o futuro.


[Alcácer-Quibir]
Uma áspera batalha vejo acesa
Entre armas Sarracenas e de Cristo,
No raivoso tropel e na bruteza
De fim não manifesto nem previsto;
Alevanta-se a fúria portuguesa
Mas nada vejo claramente visto:
Mudado fica em sangue o campo inteiro
E o pó das cavalgadas em nevoeiro.


[Dominação filipina]
Aqui me cega os olhos o negrume
De carregada nuvem temerosa
Que enche o céu com o túrbido volume
E a terra com a sombra monstruosa;
De raios, cento e cento, o férreo lume
De carregar começa; mas, gloriosa,
Nasce da terra agora a claridade
Que leva para longe a tempestade.


[Ouro do Brasil]
Já do metal, que a tantos tanto engana,
Das minas de apartado continente,
Vejo a pequena casa lusitana
Em pompa acrescentar-se, alta e luzente;
Antes a singeleza mediana
Nunca da firme casa fosse ausente,
Que onde valor não há que o peito escude
Se faz o ouro imigo da virtude.


[O terramoto]
Rompem-se por castigo os fundamentos
Da terra que se abala e se esboroa;
Revoltam-se os revoltos elementos
No soturno trovão que o ar atroa;
A dos cristãos famosos monumentes
Famosa e formosissima Lisboa
Some-se em ruínas no aberto chão!
Humano horror! Divina maldição!


[Invasões]
Feroce bando de águias vir descendo
Dos altos de Pirene, extremo norte,
Vejo nas asas e nas garras tendo,
Suspensas sobre a terra, guerra e morte;
Mas não vai por diante o vôo horrendo
Que lhe assopra contrário o vento forte:
Apenas ficam no ar turvo e sangrento
As penas arrancadas pelo vento.


Mas as penas sinistras que tombando,
Uma pot uma, vão na cara terra,
Em penas, mas de dor, se vão mudando,
Entre irmãos levantando indigna guerra.
Por cem cursos do sol, sem fé nem mando,
Em sua Pátria própria se desterra
O povo que no rosto verdadeiro
Paz feições e paz olhos de estrangeiro.


[Invocação da Providência Divina]
O mundo vejo agora ... Mas, ó cego!
Eu que cometo em vão o tempo vário
E na visão só vejo que desprego
Triste e calamitoso itinerário!
A vós, Divino Guarda, a vós me entrego
Por que o destino dai menos contrário,
Principalmente aqui, que sou chegado
Onde seja meu canto culminado!


[Guerra Mundial]
O mundo vejo agora em chamas todo,
Em nunca havida guerra semelhante;
Rompendo o mundo com horrendo modo,
Qual contra o céu o inferno se alevante;
Em vão a nívea flor torna do lodo
E abre a vitória as azas, triunfante!
Vitória e paz se volverão em guerra
Enquanto o ódio for o sal da terra.


[Prenúncio]
o maldito o primeiro que no mundo
Na mão fechada ergueu o gládio forte
E o golpe desfechou, rudo e iracundo,
Que por mãos de homem inventou a morte!
Mas que divina mão desce ao mais fundo
Um gládio erguendo com que as trevas corte?!
Senhor! ressuscitai do nojo e insânia
A minha bem amada Lusitânia!


[Aparição]
E um Homem vejo enfim, virtuoso e grande,
Na multidão surgir de homens pequenos,
Braço que Deus mandou para que mande
Com gestos luminosos e serenos;
A lei constante e igual por gládio brande
Que a todos mais exalte e a nenhum menos;
Eis sobe, como deve, ci ilustre mando
Contra vontade sua e não rogando.


[A palavra]
Neste as virtudes claras dos antigos
Se aclaram com ser prontas e correntes;
De fronte leal defronte dos imigos
O gesto muda aos ódios iminentes;
Benigna voz que sobre altos perigos
Reüne os portugueses excelentes,
A palavra, por nobre e por honrada,
Se faz maior ainda do que a espada.


[O império]
Neste a força renasce a cujo impeno
O marítimo Império desparzido
De novo se dilata no hemisfério
Por fé subida e nova engrandecido;
Vêde-lo, já sem mancha e vitupério,
O vosso Quinto Império renascido:
Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses,
Honrando, igual a igual, os portugueses.


[O Desejado]
Senhor! Senhor! na língua me embaraço
Por vos dar o que vejo do futuro,
Que da minha visão no extremo passo
Maravilha espantosa me afiguro:
Deste no braço vejo o vosso braço,
No seu perfil o vosso, régio e puro,
Na honra sua a vossa magestade,
Na dele e vossa a inteira cristandade.


A vós vos vejo, ó Rei, no alto governo
Da amada Pátria, lá no tempo adiante,
Por que o nome da Pátria seja eterno,
Oferto a Deus em vossa mão triunfante!
E por que, em som grandíloquo e superno,
De novo em todo o mundo de vós cante,
Convosco, sombra vossa, ínclito Rei,
Por o meu Portugal renascerei!

 

Impõe-se, naturalmente, aqui uma questão enormíssima - como pode aquela história, ali em cima, relativa à proveniência destes versos de um suposto canto XI dos Lusíadas, ser verdadeira? Além disso, seria o nosso Camões, além de poeta, também um profeta, em linha com o Bandarra? Ambas as coisas parecem demasiado improváveis, até porque, muito curiosamente, a edição deste texto foi do Secretariado de Propaganda Nacional, que nunca explica muito bem como os versos foram obtidos, e eles próprios dão a entender que apenas foram escritos depois do ano de 1914. São, portanto e muito naturalmente, estrofes falsamente atribuídas ao poeta, apesar de, à data da escrita destas linhas, a BND os atribuir, erroneamente, a Luís de Camões.

Um canto XI dos Lusíadas

Desconhecemos quem terá sido o seu verdadeiro autor, nos primeiros anos do século XX, mas a ideia da produção de um derradeiro canto para a obra não era nova - por exemplo, também António Gedeão (ou Rómulo de Carvalho, se preferirem...), nos seus tempos de meninice, tentou alguns versos com um objectivo semelhante, cuja primeira estrofe reproduzimos acima. Quem assim o desejar poderá vê-los nesta página externa, mas são menos interessantes que os reproduzidos aqui, até pelo facto de não virem com uma pequena lenda associada...

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