Sobre o Tributo das Cem Donzelas
Falando-se hoje sobre o chamado Tributo das Cem Donzelas, é desde já difícil saber como o descrever. Tratou-se de uma mera lenda, ou foi baseado em factos históricos ocorridos entre os séculos VIII e IX da nossa era? Se a resposta correcta for a primeira, como se explica a sua constância em diversas outras lendas - recorde-se, por exemplo, a curiosa lenda portuguesa de Guesto Ansures? Se for a segunda, como é possível compreender-se a existência de tão poucas provas físicas de uma tão estranha e repetida ocorrência? Talvez seja melhor começar-se pelo início e recapitular, de forma muito breve, o tema em questão.
Conta-se que por volta de finais do século VIII o rei Mauregato I das Astúrias subiu ao trono de forma ilegítima com o auxílio de alguns combatentes islâmicos. Em troca desse favor, e apesar de ser cristão, ele concedeu - ou apenas aceitou, não é claro quem iniciou toda a ideia - ao seu auxiliador um tributo anual de cem donzelas (ou seja, cem jovens virgens). Como essa selecção era feita não é claro, as fontes existentes nada referem sobre a beleza das jovens (abrindo a possibilidade de que pudesse ser um bom truque para afastar de casa as jovens feias), mas algumas delas dizem é que 50 delas deveriam pertencer à nobreza e outras 50 ao povo, num estranho exemplo de igualdade medieval. As mesmas fontes também adicionam, mais raramente, uma referência curiosa - caso não existissem jovens suficientes, a falta de cada uma delas poderia ser substituída por um valor monetário que tinha sido estipulado de antemão. E então, segundo se diz, esse tributo anual de 100 donzelas prolongou-se por vários anos, até à (provavelmente lendária) Batalha de Clavijo.
Mas a grande questão, como já referido acima, terá mesmo de ser... foi este Tributo das Cem Donzelas uma realidade, ou mera história? Não sabemos, nem é fácil sabê-lo. Sabemos, isso sim, é que toda a situação gerou um conjunto de referências reais e lendárias ao longo dos séculos, desde pequenas piadas (e.g. "Porque queriam os Mouros as mulheres do local X? Elas lá são tão feias!"), até histórias que preservam oposições locais a esta ocorrência (e.g. a lenda dos Figueroas, em Espanha, muito semelhante à nossa lenda da "Canção do Figueiral"). Entre elas conta-se uma referência muito inesperada à finalidade dos Mouros para as tais donzelas: eles levavam-nas para os seus haréns, só assim se podendo explicar - segundo esta história - como cada um deles até conseguia ter tantas mulheres diferentes para si mesmo... uma ideia muito digna de nota, porque pode permitir compreender-se, finalmente, a verdade por detrás de todo o episódio.
É provável, seguindo-se esse caminho, que a ideia do Tributo das Cem Donzelas tenha nascido de uma compreensão incorrecta e retroactiva de alguns dos costumes dos Mouros. Se se acreditava, nessa altura, que cada um deles tinha, por razões culturais, um verdadeiro direito a possuir várias mulheres, faz sentido que alguns Cristãos se tenham interrogado sobre a sua proveniência, levando à possibilidade de imaginar um tempo antigo em que elas tinham sido obtidas por oferenda cristã. Isso poderá, ou não, ter sido verdade, mas no mínimo dos mínimos deverá ter inspirado todo um conjunto de lendas a que ainda temos acesso hoje, nas quais diversos heróis - recorde-se, novamente, o nosso próprio Guesto Ansures - impediram algumas jovens locais de serem levadas pelos Mouros. E esta possibilidade não só pode explicar a existência das tais lendas, com as costumeiras interrogações por elas deixadas (i.e. se o objectivo fosse somente o de obter tantas jovens virgens quanto possível, é provável que muitos islâmicos tivessem obtido para si mulheres bastante feias, lamentando depois quem lhes tinha "saído na rifa"!), como também a ausência de provas físicas de todo o tributo - ele provavelmente existiu apenas na imaginação popular, não deixando por isso provas desta natureza!